Ac. Fiuza leu “Yasargil”, de Larry Rogers

Yasargil

Ele é um turco feio, atarracado, mal encarado. Tem uma sobrancelha enorme, que se une no meio da testa, tornando sua expressão ainda mais carregada. Mal educado, impaciente, grosseiro, atende mal a todos os que o visitam. Essa é a pessoa que eu mais admirei em minha vida.
Trata-se de M. Gazi Yasargil, cuja biografia, escrita pelo americano Larry Rogers eu acabo de ler. É o maior neurocirurgião de todos os tempos.
Yasargil foi um homem que se fez, um obstinado. Saiu da Turquia logo após a derrota de seu pais na Primeira Guerra e foi estudar Medicina na Alemanha. Tratado com aspereza, trabalhou no serviço de limpeza de hospitais até conseguir um lugar como instrumentador cirúrgico, já em época de guerra. Conseguiu finalmente um lugar para estudar Medicina na Universidade de Jena. Os alemães estavam perdendo a guerra. Os russos e os americanos estavam chegando.
Gazi escapou para a Suíça em uma fuga arriscada e atribulada. Depois de ter sido recusado em Zurique, foi aceito na Basileia. Lá completou seu curso medicina.
Suas dificuldades continuavam, desta vez para conseguir uma vaga para a especialização. Ficou algum tempo acompanhando serviços de Clínica Médica, de Psiquiatria e de Neuroanatomia, sempre com dedicação total. Por fim, conseguiu uma vaga para fazer Neurocirurgia em Zurique.
Foi a época “heroica” da Neurocirurgia, uma especialidade emergente que tentava tratar doenças graves com recursos limitados. Os exames então disponíveis apenas sugeriam a doença e sua localização, sem aponta-los com precisão. Os instrumentos ainda eram grosseiros e a iluminação cirúrgica era precária, tornando distinguir os tecidos doentes dos normais. Yasargil aprendeu o estado da arte, mas intuiu que precisava desenvolver algo diferente.
Foi para os EUA visitar o serviço de cirurgia experimental do Prof. Slater e lá teve contato com o microscópio cirúrgico. Foi um encantamento, ao qual dedicaria o resto de sua vida. Slater depois falaria: “Eu levei trinta minutos mostrando a ele como operar um microscópio. Ele passou os quarenta anos seguintes mostrando a nós o que fazer com ele”.
Yasargil voltou a Zurique e começou a utilizar o microscópio nas cirurgias mais difíceis e, a seguir, em todas. Concebeu técnicas especiais de manipular o sistema nervoso com as novas condições. Descobriu instrumentos mais delicados, como pinças de relojoeiro. Com o apoio da indústria, passou a desenvolver instrumentos mais precisos, afastadores delicadíssimos para o cérebro e mesmo microscópios especialmente dedicados à Neurocirurgia.
Os resultados logo apareceram. Passou a apresentar seus trabalhos em congressos internacionais e a receber visitas de neurocirurgiões de todo mundo. Estes, que duvidavam de resultados tão melhores do que os conseguidos por técnicas convencionais, puderam constatar em Zurique a habilidade do neurocirurgião turco e como os pacientes já estavam bem no dia seguinte à operação.
Apesar de pop-star mundial, Yasargil continuava sem prestígio em seu próprio serviço. O chefe era o Prof. Krayenbühl, um competente e famoso neurocirurgião, que dominava bem as técnicas neurocirúrgicas convencionais e resistia às inovações do pupilo. Finalmente cedeu e, quando se aposentou, designou Yasargil chefe o serviço do Kantonspital Zurich.
Visitei o serviço de Yasargil em Zurique quando eu era um jovem neurocirurgião. Eu o via operar todas as manhãs e passava as tardes em seu laboratório de microcirurgia, treinando as técnicas que ele preconizava. Ali eu descobri o gênio. Ali eu constatei como o preciosismo dos detalhes o ajudavam a enfrentar as situações mais difíceis. Eu presenciei uma habilidade que elevava a técnica a um estado de arte, trazendo deleite a especialistas de todo mundo, que acompanhavam sua ação, boquiabertos. Constatei ainda seu compromisso maior, com o seu paciente e com o resultado da cirurgia.
Por isto ele era intransigente com qualquer fator que pudesse atrapalhar a sua missão, por menor que fosse. Por isto ele chegava a ser grosseiro e mesmo agressivo com qualquer fator que o distraísse, mesmo que fosse a tosse de um visitante estrangeiro. E nós entendíamos. E o admirávamos. E o imitávamos.
Ele foi um Da Vinci, um Mozart, foi um Pelé. Absolutamente único.
A biografia de um gênio merece sempre ser lida, independentemente da área a que ele se dedicou. Esta não é uma exceção. Conta a história do fim do Império Otomano e nascimento da Turquia, da vivência de um imigrante turco na Alemanha da Segunda Guerra, dos preconceitos sofridos na Suíça, da fase primitiva de uma especialidade dificílima e da contribuição do gênio para desenvolvê-la. É uma aventura e tanto.
Eu, que vivi parte desta história, me senti no mesmo barco.

Resenha de Ronald Fiuza

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