Ac. Guerreiro leu “2666”, de Roberto Bolaño
Li o incensado romance 2666 do escritor chileno Roberto Bolaño eleito o livro do ano pela revistaTime quando de seu lançamento em 2004 ,e que contrariando a tradição fantástica latino-americana é de um realismo atroz, pretendendo em suas 848 páginas discutir os problemas existenciais.
A epígrafe de Charles Baudelaire, e a que se dá habitualmente pouca atenção cumpre sua função: ” Um oásis de horror em um deserto de tédio”. Dizer que reflete sobre a natureza do mal, da relação entre cultura e violência, do comportamento habitual do ser humano é ser caridoso com a obra, muito menos colocá-la como o crítico Rodrigo Fasán ao nível de Cervantes, Melville, Proust, Musil e Pynchón é puro delírio.
Costurada em cinco partes de início a expectativa é alta nas discussões entre quatro acadêmicos empenhados em encontrar um obscuro escritor alemão que se esconde sob o pseudônimo de Benno von Archimboldi, e ,de que até que ponto pode-se conhecer uma pessoa. Humor sutil transparece nas discussões que enveredam na crítica de artes plásticas e na erudição do autor.Cria então um artista plástico ligado a movimento fictício denominado Animalismo ( e adequado a certas manifestações contemporâneas) que se auto mutila amputando a mão direita, a embalsamando e costurando ao centro de uma tela, será sua opus magna que o consagrará pela crítica, e as demais produzidas sendo nulidades.
Fica clara a inserção do escritor no Pós Modernismo em literatura ao criar uma grande narrativa criticando a racionalidade e questionando a forma pela desconstrução no discurso. Por trás, entretanto, vem o questionamento sobre moralidade, natureza humana, e, principalmente a verdade, eterna busca filosófica. Ao fazê-lo contudo o sentido se torna obscuro nada acrescentando ao já sabido, uma crítica à nossa época, discutindo sobre o entrelace entre política e economia nos interesses sociais impedindo que “a verdade” venha à tona, discurso datado desde Marx. A realidade não mediada pelo discurso é impossível, e a oposição bem-mal é irrelevante, como Derrida já discutiu.
Criar personagem chave como Archimboldi tal como citação do pintor maneirista é apenas paródia ( presente em autores mais consistentes como Paul Auster) uma vez que o pintor se tornou famoso pela construção/desconstrução da forma, passível de ser vista de mais de uma maneira. Do mesmo modo inclui Rafael Dieste ( escritor da Geração de 22) com seu “Testamento Geométrico” que foi comparado a Escher ” que transformava o caos em ordem, mesmo que a preço do que comumente se conhece como sensatez”. Essa obra real serviu de gancho para uma obra inexistente de Duchamp, um ready-made com instruções para pendurar o livro numa janela de modo a que “o vento poder folhear o livro, escolher os problemas, virar as páginas e arrancá-las”.
E por aí vai, citando filósofos em debates possíveis e impossíveis, nomes e mais nomes enfileirados como ao citar as fobias numa tentativa de catalogar o mundo, que se justificava na obra “A vida modo de usar” de Georges Perec, essa sim uma tentativa de compreensão do mundo como quebra-cabeças , plural como a existência, do mesmo modo que no “Jogo da Amarelinha” de Julio Cortazar.
O centro da obra que seria sua razão de existir se arrasta em 260 páginas relatando crimes contra mulheres, desde os “comuns” no âmbito familiar devido a traições, ciumes e sentimentos possessivos até os de serial killers na Ciudád Juárez, algo que poderia ser enfileirado como B.O. apenas para demonstrar o papel da mulher na sociedade como objeto de consumo, e de que ela é partícipe pelo modo como a sexualidade é encarada contemporaneamente . Aliás, o anedotário colocado pelo autor, de extrema misoginia e vulgaridade aponta uma compulsão que permeia a obra na banalização do sexo. E aparece como “en passant”massacre na segunda guerra como mera burocracia e descaso pela vida de modo a articular a narrativa.
Difícil saber a intenção do autor ao intitular a obra não fora a Nota do Editor que o autor cinco anos antes ( 1999) ao escrever o romance “Amuleto” comenta de uma avenida em cidade mexicana que parecia um cemitério escondido no ano de 2666.
Concluo pensando em Nietszche :” Quando você olha muito tempo para um abismo o abismo olha para você. A intenção de Bolaño terminou por o engolir numa voragem de palavras, incapaz de refletir sobre o mal, ao mergulhar em sua existência esqueceu a própria razão da Literatura.