Ac. Rodrigo leu “Desonra”, de J.M.Coetzee

DESONRA

 J.M. COETZEE

Foi com surpresa que li Desonra. Não pela boa trama da estória, já esperada, mas principalmente pela crueza da narrativa e pelo inconformismo do personagem em face dos novos tempos e das novas exigências morais.

O primeiro inconformismo se revela a partir de uma suposta superficialidade. David Lurie está com 53 anos, para ele o prenúncio da velhice. Entende-se nos últimos dias de sua sensualidade, e quer gozá-la de toda maneira. Confessa que seu maior interesse na vida foi se aproximar das mulheres. Isso contraria o imaginário do intelectual, que como tal deveria ter interesses e afetos sobrepujantes aos carnais.

David é também um professor universitário desencantado com a pós-modernidade e com a mercantilização do ensino. De professor de línguas entusiasta dos clássicos e de questões mais acadêmicas, tem de lidar agora com uma linguagem aplicada, voltada a satisfazer o mercado. Ainda assim, consegue lecionar matérias de sua preferência nos interstícios do curso, em disciplinas optativas.

Ao envolver-se com uma estudante, tem início sua desgraça. Mas ele não se dobra às novas convenções, à ditadura do politicamente correto. Em sua defesa, invoca o desejo, capaz de redimi-lo de qualquer culpa pela abordagem que praticou. De resto, o envolvimento foi consensual. Em suma, não se defende do modo agora exigido. Ele precisaria arrepender-se, praticar uma contrição, juntar à esfera jurídica a esfera moral, admitir-se em erro. Porém, não quer e não pode moralmente fazê-lo.

A coisa piora. Para além da marginalização provocada por sua demissão, será a vez da desonra atingir sua família.

De suposto assediador, David situa-se agora no reverso da medalha, cabendo-lhe lidar com a violência contra sua filha. Lucy é estuprada, servindo como uma espécie de repositório de uma vingança coletiva da nova África do Sul. E será ainda preciso uma acomodação com os criminosos, não mais vistos individualmente, mas como os representantes das novas forças políticas e sociais. Lembrei-me de Boris Vian, de “Vou cuspir no seu túmulo”, em que as condições de opressão social e racial justificariam uma violência individual. Mas os autores parecem caminhar em sentidos opostos, quase a repetir o duelo existencialista entre Sartre e Camus: Vian, bebendo de uma fonte sartreana original, parece convencido da legitimidade desse caminho; Coetzee, tal como um Camus contemporâneo, revela, nos detalhes de cada individualidade e de cada situação, o absurdo da violência.

David representa também a imagem de muitos intelectuais. Para além da preocupação com os livros, ocupa-se com a derradeira peça que pretende escrever, espécie de opereta redentora de seu cansaço e capaz de perpetuar sua existência.

Um paralelo interessante desvela-se a partir da nova atividade de David,  quando este se muda da cidade grande e cai na modorra da vida rural. Por conselho de sua filha, presta serviços voluntários para uma ONG de defesa dos animais. Ali, porém, para além da preservação da vida e da recuperação dos animais, defende-se, em último caso, a morte assistida. Uma eutanásia supostamente cheia de amor, que se repete constantemente, dia após dia. A reflexão que fica é: o assassinato da reputação de David, supostamente praticada em nome do amor, tem comparativo com a eutanásia feita com os cachorros? E que dizer da conduta de Lucy, que se mortifica em nome da paz social? Também o amor a justificaria?

Esse livro escrito de modo cru, sem rebuscamento, traz-nos muitas reflexões. É um retrato da África do Sul da virada do século, pós-apartheid, vivida ainda a ferro quente. Mas como toda grande obra, traz consigo também o questionamento necessário em face de valores e temas universais.

 

Resenha de Rodrigo Bornholdt

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