Ac. Ronald Fiuza leu “Os Ensaios”, de Michel de Montaigne
Os Ensaios – Michel de Montaigne
Eu tive este livro nas mãos na década de 1970, quando comprei o meu volume da coleção “Os Pensadores” na banca de revistas. Não me animei a lê-lo, já que Montaigne não era um dos filósofos que mais me interessavam e também porque o livro era muito grande, com cerca de 100 capítulos, nas suas mais de 500 páginas. Eu não sabia o que estava perdendo.
“Os Ensaios” é um livro fantástico, de leitura agradabilíssima. Longe de parecer um tratado pesado de filosofia, ler um de seus capítulos é como bater um papo com um amigo na mesa de um bar. E não é com qualquer um. É com um amigo culto, inteligente, muito interessante.
Montaigne fala ali sobre todo tipo de assunto. Fala sobre emoções como tristeza, medo ou ódio. Aborda problemas de comportamento, como mentira, covardia, crueldade, embriaguez. Defende ardentemente uma vida moderada, honesta, virtuosa e perseverante diante das mudanças e desafios da vida. Aborda temas essenciais, que vão de como educar as crianças a como aprender a morrer.
Ele viveu em plena época dos Descobrimentos e seus textos sobre as diferenças culturais encontradas no Novo Mundo indicam o nascedouro da antropologia. O capítulo “Os canibais” é de especial interesse para nós, brasileiros, pois fala sobre o que a expedição francesa de Villegagnon ao Rio de Janeiro pôde observar na população indígena brasileira. Ali ele mostra a sua tolerância às diferenças culturais e tece bela descrição do estilo de vida da população nativa. Montaigne concorda que o canibalismo era, de fato, inaceitável, mas chega a dizer que era menos perverso que as torturas que se faziam em pessoas vivas nas guerras religiosas da Europa.
Os textos são variados e os capítulos não observam sequência lógica. O autor se permite voar em conjecturas e devaneios. Não tendo o compromisso dos grandes doutrinadores, a escrita é leve e, geralmente, bem humorada. Os textos mostram pensamentos livres bem como análises rigorosas, sempre com muitos exemplos tirados das leituras do autor. Nas idas e vindas de seu pensamento, ele elenca suas dúvidas, considerando a retórica como um importante instrumento de persuasão. Ele tende a negar a possibilidade de um homem atingir conhecimentos estáveis. Mostra, assim, seu lado cético.
Para mostrar as ideias de Montaigne precisaríamos, nós mesmos, fazer ensaios adicionais sobre cada um de seus capítulos. Para dar uma noção do tipo de argumentos utilizados, vou mostrar algumas ideias extraídas do seu texto: “Como filosofar é aprender a morrer”.
“A morte não é uma ameaça. É inevitável, nosso destino final. Portanto, não devemos temê-la. A privação da vida não é um mau. / Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade. Devemos estar sempre preparados para partir. A natureza já nos prepara para a morte. Se ela é súbita, não temos tempo de temê-la; se não, na medida em que a doença nos domina, diminui o nosso apego à vida. / Viver é muito ou pouco é a mesma coisa. Há insetos que vivem só um dia; se morrem às oito da manhã, morrem jovens. Se for às cinco da tarde, morrem decrépitos. / Lastimar não mais viver dentro de 100 anos é tão absurdo quanto lamentar não ter nascido um século antes. / Não nascemos por nossa vontade, e morreremos da mesma forma. Morrer é a própria condição da nossa criação. A morte é, portanto, parte integrante de nós mesmos. / A vida em si não é um bem nenhum mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazemos. / Se vivemos um dia já vimos tudo pois um dia é igual a todos os outros. / A morte é uma condição de igualdade e de equidade. Todos a terão. / Assim, não devemos temer a morte. Enquanto vivemos, ela não estará aqui. Quando ela chegar, nós não estaremos. / Lucrécio ensinava a Tales que viver e morrer são indiferentes. Tales perguntou por que não se matava e a resposta foi: porque é indiferente.”
Em um capítulo especialmente trabalhado, Montaigne critica a terrível guerra entre católicos e protestantes de sua época e defende a tolerância religiosa. Seu lado cético fica então mais demonstrado, quando ele contesta que a prova da existência de Deus deva ser feita por argumentação, devendo ser considerada uma questão de fé.
Michel de Montaigne nasceu em família aristocrática na região de Bordeaux, na França. Foi submetido a educação clássica e sua língua materna acabou sendo o latim. Assim, leu os clássicos no original, chegando a traduzir alguns deles para o francês. Acabou envolvendo-se na política e chegou a ser prefeito de Bordeaux. Retirou-se desta atividade ainda novo, optando por enclausurar-se na torre do castelo da família, onde escreveu os seus “Ensaios”.
Em sua mensagem ao leitor no início do livro, Montaigne alerta; “Escrevi este livro para mim mesmo. Eu quis que me vissem na minha simplicidade natural, sem artifícios. Aqui se exibiram meus defeitos e minha ingenuidade. Sou eu mesmo a matéria desse livro.”
Os “Ensaios” é um livrão, que pode e deve ser lido aos poucos. Tanto faz se os capítulos forem lidos em sequência ou por escolha aleatória. Sugiro que leiam alguns capítulos seguidos na primeira vez, para se habituar com o estilo do autor. Depois, é só deixar na cabeceira e degustar, pouco a pouco.
Resenha de Ronald Fiuza