Ac. Walter Guerreiro leu “A casa do sono”, de Jonathan Coe

A Casa do Sono

(crítica)

 

Lendo a obra “A casa do sono” do inglês Jonathan Coe me vieram à lembrança as palavras de outro inglês, William Shakespeare na peça teatral “A tempestade”: Nós somos como esta matéria / de que são feitos os sonhos, e a nossa vida / é rematada com um sono.

Se à primeira vista se trata de um romance comum, a história se passando em duas épocas, nos capítulos pares nos anos oitenta em uma casa de estudantes, uma república como chamávamos, nos ímpares nos anos noventa, agora numa clínica para pacientes com distúrbios de sono instalada nessa mesma casa, a história é bem outra. Nessa área específica da neurociência, e da qual, como comuns mortais pouco sabemos, o livro traz informações que tecerão a trama do romance e do aporte do que é a realidade; a evolução se fazendo através dos estágios do sono, desde o 1, na transição entre vigília e sono, passando pelo 2, quando a atividade cerebral na consciência diminui, pelo 3, essencial para a recuperação física e chegando ao 4, dito MRO ou NREM, o mais pesado em que ocorrem os sonhos, importante para a memória e as emoções com a paralisia do sono e, do sonambulismo.

São cinco personagens, cada um com seus dramas pessoais dentre os quais Sarah se destaca por sofrer de narcolepsia em que sonho e realidade se misturam, nos demais os caminhos se entrecruzam e o passado vem à tona nos fazendo pensar sobre as escolhas e o crescimento pessoal.

Como de praxe entre autores ingleses, há ironia e humor nas entrelinhas, tais como referências a personagens de terror britânicas como o Sandman, de outro, a acusação clara quanto a pesquisas médicas que beiram a insensibilidade e crueldade nos laboratórios norte-americanos. Relações amorosas entre realidade e sonhos na construção das identidades e memórias, com um toque de humor que pode ser lido como comédia de costumes ao se tocar nas regras, moral e violações de uma sociedade, em que os indivíduos são atores de uma tragicomédia da vida. Quando Terry, um dos personagens que sofre de insônia grave e é crítico de cinema discute sobre qual o melhor diretor de cinema, Manoel de Oliveira ou Quentin Tarantino, os argumentos não são meras demonstrações de cultura, são inteligentes, comparando-os a um jogo de futebol entre times de cegos no qual as traves foram retiradas; british humour, of course!

E, ao fim do romance, o clímax com a aria “Nessun dorma” da ópera Turandot, quase podemos ouvir o estribilho: os enigmas são três, a morte é uma.

Um livro excepcional, vencedor no Writers Guild Award of Great Britain e no Prix Medicis Étranger na França, junto a Kundera, Lessing, Eco, Cortazar, Roth e Auster entre outros.

Walter Guerrero

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