Ainda assim erramos (Lufiego)
AINDA ASSIM ERRAMOS
Refletindo um lugar-comum, sempre válido, lembrou um filósofo de sucesso, daqueles que veiculam vídeos nas mídias sociais e cobram pelas palestras proferidas, que o ser humano destoa positivamente do conjunto da Obra, porque come quando não tem fome e faz sexo sem estar no cio. Concordando, por experiência própria, mas sem aterrissar nesta pista de pouso, onde encontraríamos certamente outros primatas, para diferenciar o ser humano arremeto a caminho do campo da subjetividade das formas de linguagem simbólicas, embora isso seja apenas uma meta, uma rota linguística que sigo, uma miragem idealista do ato comunicativo que persigo e não alcanço como gostaria, sinto-me forçado a registrar. Minha autonomia de voo é insuficiente para chegar precisamente onde quero, no domínio razoável da escrita simbólica, mesmo que ainda permanecesse distante do fastígio da gnose alegórica. Neste afã, contentar-me-ia com a situação do Sistema Solar num braço adjacente da Galáxia, longe do centro, mas dentro. Todavia, não sofro com isso! Conformo-me em apenas pairar sobre o sopé das montanhas, sobrevoando o vale dos símbolos gráficos profanos, debruçado à beira do poço das palavras que compõem o léxico, onde existem muitas possibilidades linguísticas, não é um risco assegurar.
Eis que nos deparamos com o principal atributo do ser humano: pensar simbolicamente! A partir daí alguns escritores de maior talento passam a escrever simbolicamente, construindo linguagens simbólicas onde as convenções, ao invés de revelar, ocultam o conhecimento, exigindo de nós acuidade de raciocínio e especial sensibilidade para que não nos sintamos analfabetos. Na transição do século XIV para o XV, as guildas europeias medievais de construtores produziram dois dos principais textos em linguagem simbólica da literatura universal: os prolegômenos inspiradíssimos acerca das origens do Ofício da Arquitetura Gótica, contidos no Poema Regius e no Manuscrito Cooke, atualmente sob a guarda da British Library. O antropólogo Fernando Schwartz, nosso hermano portenho, garante que é a linguagem simbólica, e não simplesmente o raciocínio, que nos diferencia dos demais seres vivos deste mundo. Nestas linhas, abençoadas por Voltaire, e nos limites individuais dos nossos recursos, eventualmente, a linguagem simbólica se fará presente. É o que vos ofereço para leitura. Isto posto, o mérito exige que se diga, que este ensaio foi elaborado a partir da leitura de algumas páginas inspiradoras do “Livro da Literatura” da Penguin Random House e de regras gramaticais básicas para o domínio erudito da língua portuguesa. De resto é filho dos mesmos pais escritores, cujos nomes serão lembrados alhures. Boa leitura caro leitor; imprescindível leitor é o mais correto dizer. Colabore na identificação de erros que atentem contra a regularidade da gramática normativa, correspondendo-se comigo pelo e-mail:
Temos uma relação muito antiga, eu e ela, a gramática normativa, mas até hoje ela não se entregou a mim completamente; vive fugidia, transitiva, fazendo-me trôpego às vezes, vacilante sem saber o que dizer. Fico corado num instante, balbucio palavras equívocas timidamente e, se for encarado nos olhos, não consigo falar, sigo gaguejando até emudecer. Inveja tenho eu dos dois maridos de Dona Flor, porque neste caso tenho que repartir com milhares de melhores pretendentes. Lá, pelo menos, ambos dormiam, um em cada lado da cama; aqui, ah, aqui fazemos longas filas para deitar apenas por um momento com a musa endeusada e por todos perseguida.
I
A competência linguística é uma habilidade, que se adquire pela leitura de bons livros, muitos livros para dizer a verdade; melhor os físicos do que os virtuais. Cansam menos os olhos e podemos, às vezes, ler na cama, na praia, no campo. Podemos ler até nas paradas para descanso durante as caminhadas pelas trilhas selváticas da Mata Atlântica, que nos envolve exuberante como um colar de esmeraldas. Podemos ler em qualquer lugar tranquilo, silencioso ou com música de fundo adequada. Beethoven ao piano parece otimizar as sinapses neurais, oportunizando ambiente propício à leitura. Podemos ler envoltos pelos sons da natureza, que não atrapalham, razão pela qual conseguimos ler perfeitamente diante das ondas do mar – e sem receio de que grãos de areia penetrem nas “entradas” do aparelho eletrônico. Mesmo as obras traduzidas, sempre objeto de maior cuidado, para que não desperdicemos tempo precioso com traduções malfeitas, têm um grande valor. Existem bons tradutores das principais línguas para o português.
A competência linguística adquire-se, da mesma forma, a um só tempo trabalhosa e prazerosa, pelo estudo das regras gramaticais. Para pessoas, com as minhas limitações, esse estudo precisa ser quase diário. Cada dia, uma regra a mais e a revisão das já estudadas; uma reanálise da interpretação de certas regras sobretudo, porque são interpretativas e sempre podemos avançar no processo de compreensão do espírito da gramática normativa para posterior aplicação no discurso escrito. A língua nacional escrita não é para amadores, então o esforço precisa ser rotineiro e redobrado. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), inobstante as críticas de muitos especialistas, que contestaram a juridicidade do Tratado e, ainda, o mérito linguístico das adequações forçadas, virou norma e, com tal, deve ser seguido. Positivamente, deu a todos a chance de voltarmos a estudar o idioma pátrio.
A retidão da linguagem escrita não se desenvolve por psicografia, salvo nos casos psicografados, cuja existência não nego, porém desconheço. Também não se desenvolve por telepatia ou por osmose. Do travesseiro emergem para o nosso cérebro apenas sonhos e pesadelos. Neste sentido, no da busca pela competência linguística, dou um depoimento em favor do estudo do verbo, que é a chave para o desenvolvimento do discurso, pois está na essência do ato comunicativo. O resto é complemento, adjunto adverbial ou termos que precisam de uma ligação – o verbo – para fazer sentido. Portanto, o domínio da regência do verbo antecede e instrui o domínio erudito da língua em seus demais elementos gramaticais. Chegando ao ponto e não chegando no ponto, estaremos a par do que é correto, embora o nosso cacife não esteja ao par dos demais; os de maior peso. Por isso, precisamos trabalhar mais do que os outros, com mais afinco, dedicando um número maior de horas. Como diria o querido Pelé, entende?
II
O Pelé passou pelos gramados encantando a todos e, agora, um vale geográfico multicolorido, sobre o qual passo a escrever, está novamente diante de meus olhos, encantando-me, ressurgindo primaveril do emaranhado de minhas memórias literárias mais profundas, como as fossas abissais do mar-oceano, guardadas as proporções, destacada a magnitude destas e reconhecida a minha insignificância. Isto é preciso ser dito! A beleza está na natureza, no vale, nas montanhas circundantes, no rio que serpenteia até o mar. Está no interior dos olhos do poeta, que canta as belezas da terra na esperança de que as musas ouçam o seu cantar admirado. Está no modo de sentir do apaixonado pelo lugar e suas histórias de conquistas e perdas. Os mexicanos ainda sofremos com as nossas perdas territoriais, feridas que jamais vão cicatrizar, sangrarão para sempre; os americanos somos conquistadores, fizemos a terra produzir muito mais e ficamos muito mais ricos devido ao nosso trabalho!
Do alto das montanhas, estendendo-se o olhar desde as encostas do Vale do Salinas até o Pacífico esmeraldino, vislumbra-se um grandioso conjunto de figuras geométricas, umas regulares, outras assimétricas, adornadas pelo reflexo azulado das lagoas e do rio. Tabuleiros traçados pelas enxadas desgastadas de tanto trabalho, irrigados pela água que se mistura ao suor do rosto, feitos com muitos tons de verde, permeados por diferentes tons de bege, marrom, amarelo, tudo sob esparsas nuvens brancas no permanente trânsito rotativo do céu azul. Azul de ensolarado, porque em dias nublados predomina o cinza, conferindo à natureza a capacidade de pesar sobre os nossos ombros. E como pesa!
Fileiras de couves-flores, na pluralização de dois substantivos, que se fundem em apenas um; nutrição cotidiana dos apreciadores da língua portuguesa e de couves. Couves como botões emergentes em canteiros retilíneos vistos da superfície da Lua com uma luneta. Quase desbancam a Muralha da China, que há milênios encanta os selenitas, que se debruçam sobre o espaço admirando a Terra. Flores tecnológicas incubadas em estufas aprimoradas pela experiência; do alto parecem pontilhados à beira da estrada. Alfaces, águas-vivas esverdeadas, flutuando sobre a terra no torvelinho das ondas eólicas, colorindo extensões retangulares, que se encaixam formando um mosaico com outras formas triangulares, quadradas, esféricas, trapezoidais. Justo ali, no vale, onde persistem memórias ainda mais longevas, por onde passavam antigamente as diligências vindas do Sul, levantando poeira, correndo em direção à Salinas, para somente descansar em Monterey. Agora, naqueles antigos caminhos estão transitando tratores computadorizados. E temos o inenarrável prazer de colher pimentões saudáveis. Superados os traumas, as profundas frustrações pelas perdas, o recalque dos perdedores, como isso é bom! É bem verdade que a guerra continua, não declarada, absurda e feita de muros com arames farpados e narcotraficantes do outro lado.
Steinbeck, natural de Salinas, a oeste de Mariposa e a leste do paraíso, um sujeito meio alemão, embora tenha feito tantas outras coisas, é um exemplo de escritor que dedicou a vida a escrever. Transformou o cotidiano em algo extraordinário; criou personagens que ganharam vida fora dos livros, em nossas próprias vidas, em nossos devaneios e meditações, ao se confundirem com pessoas reais. Personagens que continuam falando conosco, mesmo depois que o livro já tenha voltado para estante. A cada linha, cada capítulo, as vinhas da ira se fazem presentes, vinhas de linhas de excelência, pomares de desespero, de incerteza, de escape da depressão econômica, da vida que se oblitera, das relações familiares contraditórias, do convívio entre vizinhos ao mesmo tempo distantes e solidários. O Vale do Salinas se descortina, além dos montes, sob as asas da esperança. Iniciado em 1921 na Ordem DeMolay, uma organização infantojuvenil patrocinada pela maçonaria norte-americana e criada pelo maçom Frank Sherman Land, foi membro do Capítulo Salinas. Nosso Sobrinho John conheceu, portanto, as Sete Virtudes Cardeais de um DeMolay: reverência pelas coisas sagradas, incluindo o respeito pelas dos outros; amor filial, com o compromisso de assistir e acarinhar os pais em sua fase senil, retribuindo os cuidados recebidos quando criança e adolescente; cortesia, iniciando em casa, na família, para então se estender às outras pessoas, sem distinções sociais; companheirismo, legado templário, que cimenta as amizades mais puras; fidelidade, inicialmente a si próprio, com elevada autoestima, para ser fiel à sociedade e ao Pai Celestial, que é Deus; pureza, no pensar e no sentir, para desenvolver um coração bem formado; e patriotismo, lembrando que um jovem nascido e criado nos Estados Unidos tem muitos motivos para amar a pátria, para conhecê-la, para escrever sobre ela almejando conquistar o Pulitzer de Literatura e conquistá-lo. O DeMolay John Steinbeck é um grande campeão. Até que ponto isso influenciou sua produção literária? As Sete Virtudes Cardeais aparecem de que forma e com qual intensidade nos livros que escreveu? É possível dizer, mas será preciso mais tempo e espaço. Cyrus era maçom, isso se sabe, tanto que Adam e Charles receberam como legado a comenda maçônica do pai, uma joia de inestimado valor, quando de seu passamento ao Oriente Eterno. Aliás, desde Washington, em Washington, a grande maioria dos líderes norte-americanos, inclusive muitos presidentes, têm sido membros dedicados da Ordem Maçônica, levando à vida pública dos Estados Unidos os princípios do código de ética maçônico: reconhecimento do mérito pessoal, trabalho em equipe e eficiente processo penal para os infratores. Penso ter sido bastante conciso e claro.
III
Não entendeu? Vamos insistir! Steinbeck, cujo nome está inscrito no Salão da Fama DeMolay desde 1995, merecidamente recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1962. Faz tempo! No discurso de agradecimento, o sobrinho John, comprovando que a simplicidade é a marca dos mestres, registrou que a literatura é tão antiga quanto a fala. Com razão! Ainda que da boca de um para os ouvidos de outros, contar histórias é pura literatura. Isso ocorreu há muitos anos, no passado remoto, no tempo das narrativas em torno da fogueira, que entretinham as pessoas e, ao mesmo tempo, perpetuavam as tradições do grupo, fazendo com que atravessassem as gerações. Então, agora, no isolamento social, resolvi escrever. Isto que está acontecendo no mundo, a pandemia do vírus chinês, permite que escrevamos sobre vários assuntos. Sobra-nos tempo. Entendeu agora? Não desista! No futuro voltaremos a falar sobre o tema. É certo que a literatura que nos tira daqui e transporta para o Vale do Salinas, sobretudo nos anos úmidos, nos quais afastou-se para longe o estio e tudo verdeja, está no mesmo patamar apoteótico das composições sinfônicas de Carlos Gomes, Beethoven e Mozart, ou das pinturas de Rafael, Tarsila e Portinari – isso se Shakespeare ou Cervantes não estiverem à frente de todos, num patamar além da apoteose, tendo como pedestal abaixo de si todas as falésias litorâneas, todas as encostas das montanhas, por mais altas que sejam, por mais coroadas de neve que se mostrem! Como leitor nato de língua portuguesa, no fastígio da competência linguística, para mim, estão Machado de Assis, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos. Daí a grandiosa estatura literária do sobrinho John, do tamanho da do autor de Vidas Secas, embora distante, como a grande maioria, da estatura do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Tivesse o Bruxo do Cosme Velho nascido em El Paso de Robles estariam perfilados em sua estante, no escritório de sua casa, transformada em museu, todos os prêmios literários mundialmente mais importantes, mais de uma vez. Outro que colecionaria os principais troféus literários, se nascido em San José, mesmo em Los Gatos, ou em San Mateo, seria o Seu Jorge de Itabuna, amado fraternalmente por Pablo Neruda, confrades que eram em seus devaneios ideológicos. A tríade Tieta do Agreste, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Gabriela, Cravo e Canela, se ambientada em algum lugar baiano do litoral da Florida, onde crescessem os cacaueiros, uma espécie de Ilhéus norte-americana, o menino grapiúna, um escritor bendito, teria arrebatado todos os galardões literários. E Guimarães Rosa, e o Passarinho, e Euclides da Cunha, este porque uma única história real e épica na Caatinga vale por muitas fictícias no Velho Oeste. A genialidade desses autores está no fato de nos transportarem para dentro da mente de seus personagens, no caso de Os Sertões para dentro do palco de guerra; lemos o livro e ao mesmo tempo observamos o desenrolar dos fatos pelos olhos dos personagens. No caso do Velho Graça, também pelo de uma cadela, a Baleia!
IV
Percebo que vamos nos entendo melhor a cada linha conquistada, a cada parágrafo que não foi objeto de rejeição, a cada página que conversou conosco. O diálogo com as páginas em branco começa com a troca de olhares, algumas caretas, olhos fechados, vêm as primeiras palavras nascidas do léxico e disciplinadas pela sintaxe; tudo funcionando conforme as regras, as frases fermentam robustos parágrafos e as páginas vão ganhando conteúdo e se tornam pretas ou coloridas, ainda que mantenham o branco como pano de fundo. Então, sem mais delongas, vamos em frente, rumo à escrita, que é muito mais nova que a literatura! A escrita representou um salto quântico no processo civilizatório humano e foi uma consequência cultural da Revolução Agrícola, outro salto quântico, ainda maior para a humanidade, que em alguns parcos milênios colocou o homem na Lua e desenvolveu a Internet. Anteriormente, numa época perdida nas brumas insidiosas do tempo, caída no esquecimento das gerações e só relembrada pelo trabalho arqueológico, os perigos da vida nômade, no meio selvagem, não teriam sido vencidos se não tivéssemos uma enteléquia gregária. Tínhamos e a mantemos! Nada obstante, naquela época estarmos em permanente estado de beligerância com os outros grupos humanos nômades, vencemos o desafio da sobrevivência pela associação de esforços. Atualmente, russos e norte-americanos, se puderem, se envenenam mutuamente com plutônio. Os chineses compram terras no Brasil e um dia parte do atual Brasil será uma extensão ultra-hemisférica sob jurisdição da China. O que dirão as feministas que não terão nenhum espaço no comando do governo? O que dirão os gays, muitos dos quais nossos queridos amigos e familiares, que serão tratados à moda chinesa, que todos bem conhecem? O que dirá o talentoso Marcelo D2 diante da severidade chinesa no trato com consumidores de maconha? O que dirão os incansáveis internautas militantes ideológicos com a Internet controlada? O que diremos nós amantes da multiplicidade de palavras diante do discurso único? São respostas que os comunistas brasileiros não têm.
Desde os tempos das cavernas, foram muitas caminhadas e migrações até que nos detivéssemos à beira de grandes lagoas e rios piscosos. Rapidamente, subimos as palafitas, o que foi possível porque aprendemos a plantar. Sim! A semente plantada e o fruto colhido com periodicidade, permitiu que o homem virasse carpinteiro e construtor de sua própria morada, onde lhe aprouvesse e as condições geofísicas não impedissem. A loba pariu cachorrinhos, que rodeavam as nossas fogueiras, cada vez mais próximos, até que passaram a dormir conosco. Domadores do lobo-fera, nos sobrou tempo para modelar o barro e inventamos a cerâmica, nos sobrou tempo para avivar o fogo e derreter metais até que fabricamos a primeira espada. Assim vencemos e o tigre é que passou a ter medo de nós, se andássemos em grupo. Na medida em que os silos, ainda rústicos, se enchiam, os nomes se multiplicavam e os destinos se ampliavam diversos, surgiram os primeiros registros escritos, para imobilizar na argila do fundo dos rios, em forma de cunha, o movimento crescente que a mente já não conseguia guardar. As primeiras formas de escrita foram desenvolvidas no Egito e na Mesopotâmia e o simples fato de saber escrever conferia ao escriba alta patente social. Para a população, exceto escribas e sábios, ler e escrever era algo muito próximo da magia. Escrever o próprio nome era uma conquista suprema, que conferia poder a quem o fizesse. Infelizmente, muitos tabletes cuneiformes e rolos de papiro foram mal acondicionados e se perderam para sempre. Homens maus, todos aqueles que foram displicentes. O mau adjetivo, porque no fundo poderia – e deveria – ser bom, convive com o mal advérbio, que, na verdade, é a antítese do bem em todos os casos, e os que foram negligentes serão declarados culpados, pelo mal que fizeram à história, à filosofia e ao conhecimento. Como é salutar para o intelecto o entendimento. Muito bom tê-lo comigo, caro leitor, nesta digressão a serviço da gramática normativa. Continuemos caminhando juntos para identificar possíveis erros.
V
Neste diapasão harmônico e construtivo, é possível afirmar que, mal surgiu a escrita, surgiram os livros, independentemente da forma. Tabletes de barro, rolos de papiro. No início era a literatura dos números, dos inventários de bens, anotações de comerciantes. A saga de Gilgamesh, uma das obras que inauguram a literatura universal, na qual a perda de um ente querido fez sangrar os joelhos da arrogância levando à sabedoria, é bem posterior. As sociedades já estavam bem maiores, os exércitos eram formados por inúmeros guerreiros, e o trabalho estava muito mais dividido. Os primeiros escribas eram todos contadores, não de histórias lendárias ou alegóricas, que vieram imediatamente depois, mas de quantidades, nomes e endereços, que são, na verdade, histórias contábeis. Sem eles, instalar-se-ia o caos e todos estariam perdidos. Sofreriam as consequências do mal da ignorância, que leva à desordem. Um escriba, que não cuidasse dos registros sob sua responsabilidade, pela importância social que tinha, sem dúvida, seria considerado um homem mau, merecendo a reprovação de todos.
Afinal, dando um pequeno salto no tempo, qual era mesmo o mal de César? A temeridade! Errar é humano, mas César foi temerário ao subir sozinho as escadarias do Senado Romano. Nós, outros tempos e lugar, somos o nosso próprio César, e continuamos patrocinando carreiras de senadores para políticos profissionais, representantes da velha política, que se não fora trágica obra, seria uma comédia onde ratos carcomem o queijo nosso de todos os dias, sobem em palanques, juram que são iguais à maioria e jantam lagostas em iates à beira-mar, reservando para si o seleto e mais aprazível de todos os adjuntos adverbiais de lugar.
VI
E por falar em males psiquiátricos de grandes governantes como o ditador romano, lembrando de seus tremores e sufocações, falemos também na formação da literatura psicológica da massa plebeia, onde estão presentes as horas ordinárias do dia, e as especiais como o meio-dia e a meia-noite. Aliás, existem obreiros que trabalham do meio-dia à meia-noite, embora, na verdade, não cheguem a trabalhar meio dia. Os horários são simbólicos, os trabalhos também. O problema que os analistas precisam enfrentar para socorrer o paciente é quando passa do meio-dia meia hora. A meia-noite não sofre desse mal e está dispensada neste momento, desde que permaneça por perto, mas o meio-dia está sofrendo as consequências de uma típica crise de gênero; se aceitasse sua própria natureza, tudo estaria resolvido e não haveria motivo para sofrer, mas ele não admite romper com o padrão que lhe foi pré-estabelecido. O receberíamos de braços abertos, sem o preconceito que ele parece tanto temer – e tenho certeza que a meia-noite entenderia, mesmo porque seu maior interesse está na madrugada. Mas não! Depois de meia hora, o meio-dia, todo santo dia, volta a sentir-se bulinado por todos, que insistem em lhe chamar de meio-dia e meia. Sente-se constrangido com essa história de “meia” e não “meio”, ainda que não possa apontar um erro ortográfico e absolutamente não queria fraudar o tempo subtraindo-lhe algumas horas do dia. Realmente, se assentíssemos com o que ele quer, ser chamado de meio-dia e meio, já não estaríamos lá pelas seis horas da tarde, noite no solstício de inverno? Perderíamos todos os festivais vespertinos e o chá das cinco estaria suspenso para sempre. Esse meio-dia! Neste caso, aceita então ser chamado de “Trinta Minutos da Boa Tarde”, na falta de um outro nome que não mexa com suas “neuras” antigas. Sem meio-termo, sem nenhuma reserva ou comedimento, procuro um meio para que o meio-dia e meia, pois afinal ele tem o direito de ser o que é, se convença, definitivamente, que não vale a pena sofrer, pois não passa de reles meia hora após às doze. Quando lembrar de suas “neuras”, basta respirar fundo. Pronto! Já passou e é quase uma hora, daqui a pouco serão duas da tarde e o futuro chegou! Raro momento, em que o tempo, que não para, trabalha como psicólogo em nosso favor. A velocidade com que o tempo passa, penso que todos concordam, é muito rápida; mesmo assim serve para curar feridas, criar cascas sobre a pele, jogar poeira e depois areia, jogar terra sobre os traumas e medos das coisas que gostaríamos de esquecer, até porque, enquanto o tempo não passa, são delas que mais lembramos. Esse foi o mal do meio-dia, que a partir de agora só vos dará um boa-tarde após superado o trauma daqueles trinta minutos terríveis. Boa tarde a todos vocês! Neste momento, preciso que você, caro leitor, tenha entendido. Entendeu? O Pelé outra vez! Querido! Ídolo maior junto com o Airton.
VII
Fui dormir à meia-noite em ponto. Jornada encerrada! Exaurido de tantas metades e suas roupagens, de tantos meios-dias neuróticos, com hífen ou sem. Dormi e sonhei com pontes douradas e viadutos apinhados de famílias alegres indo para a praia em seus carros novos, com seus guarda-sóis, suas pranchas de surfe. Sonhei com extensas plantações de berinjela ao lado de jardins multicoloridos, no meio das quais o espantalho era um ser animado atraindo para um saco sem fundo os corvos daninhos. Mais ao longe, havia um deserto onde as árvores não tinham folhas e os galhos estavam de tal forma retorcidos que pareciam braços esquálidos acenando para o vazio. Sonhei com castelos cujas masmorras, no gelado mundo do subterrâneo, eram as derradeiras e seguras moradas do vício, com torres apontadas para o cosmos, no alto de uma das quais Pablo Neruda conversava com Oscar Niemayer sobre a União Soviética, sob o olhar atento de Graciliano Ramos e abaixo de um firmamento estrelado pintado à mão pelo artista. Sonhei com canais virtuais de comunicação e com conexões fantásticas entre as pessoas, que podiam então, distantes, estarem juntas para atravessar amparadas umas nas outras um rio caudaloso de adversidades. Sonhei enquanto o corpo dormia confortável e estou a fim de escrever sobre minhas experiências oníricas e, acordando do sono dos que ainda não vão morrer, literárias. Sonhei com uma famosa locução prepositiva, que passou a noite cantando para mim, num bar inglês saído da capa de um disco de vinil dos anos de ouro do rock progressivo, e aqui estou dividindo-a com o leitor a fim de melhor entendê-la. Depois de tanto sonhar, com a vantagem de que os sonhos não cansam, acordei mais cedo do que de costume, a fim de escrever sobre temas fáceis e afins. Nada de imbricações neuróticas, apenas leves pensamentos com os pés quase flutuando sobre a realidade, nenhum temor ou preconceito em face da surrealidade, uma vez que a noite foi uma colorida jornada de sonhos, que afetarão a inspiração ao longo do dia, sendo total perda de tempo resistir.
Existem duas literaturas: a universal e a nossa, pessoal, individual, que, na maioria dos casos, fica esquecida no fundo de uma caixa de papelão, na qual vamos acumulando as folhas físicas gravadas ao longo de anos com os nossos textos e poemas. Hoje, a produção literária fica guardada na nuvem virtual. O cânone entre a literatura universal e a nossa, preferencialmente, se não for o mesmo, deve pelo menos apresentar convergência, por uma questão de adequação à contemporaneidade. Nós, simples mortais das “letras”, precisamos remar e remar para nos aproximarmos do cânone que permite um ato comunicativo universal e moderno. João Guimarães Rosa, naturalmente, remou menos. Aliás, enveredou pela poeira do sertão a fim de separar o feio do bonito, a tristeza da alegria, e mais andou por aquelas espinhentas veredas do que remou. Graciliano Ramos, outro gênio brasileiro, não precisou sequer dar uma única remada. Dissecou a vida, com aparência de desinteressante, para revelar o que passa pelo coração humano e pelo de “Baleia”, ou seja, o que vai no coração canino, que no fundo é o coração da gente.
Escrevo este texto, no amanhecer do dia, a fim de confessar que a locução prepositiva, com a qual sonhei à noite, não me sai da cabeça, pois representa um desejo anímico, vontade intelectual, um anelo absolutamente conhecido, profundo, com imensurável teor substantivo. Um portal para a vida, para a felicidade! Sonhando e remando em direção ao cânone literário de meu tempo, percebi, naquelas paragens oníricas, surreais, no mundo dos nossos desejos revelados no sonho, que temos sentimentos afins. Destarte, desconfio que estaremos ligados para sempre a fim de sermos felizes. Percebeu a diferença? Agora foi fácil!
VIII
Por falar em cânone literário, hoje os parâmetros e modelos não são mais estáticos como o eram até 1945. O gesso das referências estanques da lavra de poucos privilegiados se fragmentou em incontáveis pedaços. Os monopólios de construção dos parâmetros literários ruíram diante da democratização das opiniões e ações. As novas gerações de escritores, no vórtice tensional da Guerra Fria, não aceitaram os antigos pilares da literatura e, certamente, no futuro, isso se repetirá. Na contemporaneidade, o objetivo de grande parte da produção literária é que as palavras contadas, independentemente da forma e do canal, mesmo as antigas, sejam reveladas no “livro” como se tivessem sido inventadas naquele momento. E muitas têm sido inventadas a uma velocidade que não conseguimos acompanhar. Aristóteles tem a nossa idolatria intelectual. O grande pensador está acima de qualquer erro que eventualmente tenha cometido ou de qualquer conceito limitado que tenha engendrado em suas reflexões, pois quando retornamos à base do conhecimento lá está ele. O currículo do grego é invejável: fundou a escola peripatética e o Liceu, foi aluno de Platão, recebeu em sua formação intelectual influência de Sócrates, Demócrito, Hipócrates e Epicuro, citando apenas alguns dos principais, e deu aulas para Alexandre Magno. Um gigante na construção do conhecimento e, diga-se de passagem, nas relações sociais. Então sabemos, há muito tempo, que o homem é um ser social e que as relações sociais determinam o léxico e, muitas vezes, o êxito. Também é inegável que as construções sociais determinem a literatura. O cânone consagrado tem sido reexaminado e reescrito pelas novas gerações, que têm este direito, pois as construções sociais estão sempre mudando e agora são outras. Hoje, os escritores falam diretamente ao leitor, antes só falavam por meio dos editores. Se você não tem tempo sobrando, continue lendo com gosto, porque os bitolados, sempre tão ocupados dentro dos próprios limites, não alcançam o néctar e a ambrosia deste privilégio. Falta-lhes tempo, justificam! Se você tem tempo sobrando, está perdoado, pode parar de ler, você já atingiu estágio mais elevado. Literatura não é para quem tem tempo sobrando; as páginas demoram para virar, a preguiça torna os olhos pesados, as pálpebras vão se fechando lentamente, as letras vão embaralhando, as linhas tornam-se curvas, a cabeça pende para a frente . . .
– Opa! Acabei dormitando. Onde eu estava? Voltemos deste rápido mergulho na bonança do sono. A literatura é para quem não tem tempo a perder! E, acredite caro leitor, se leres muito, lerás cada vez mais rápido, mantendo e aumentando paulatinamente a compreensão do texto.
IX
O cânone da literatura é definido pelas construções sociais, que são históricas e mutáveis ao longo do tempo. O cânone representa o pensamento de um determinado período histórico. As diversas fases do pensamento e seu reflexo na literatura estão ligadas por hifens brasileiros e por hífenes lusitanos, muitas vezes ostensivos, noutras subentendidos.
– Faça uma autoanálise de seu próprio conhecimento de História da Literatura, do “Trovadorismo Medieval” até os dias de hoje.
– Não? Então, algo mais simples: faça um autorrecuo apenas até o início dos anos noventa. Trinta anos de história da literatura tão somente. Cure suas dores com um remédio antirreumático eficiente e aceite que a literatura é filha da mutação do pensamento. Seja o mandachuva de si mesmo e abra o intelecto para as mudanças. Superemos nossa pré-história. Sejamos pós-modernos. Participemos do contra-ataque dos leitores ao avanço do pó sobre os livros. Transformemo-nos em super-humanos adaptados às novas construções sociais, convergindo firmes e satisfeitos com o cânone literário universal e aos pés da gramática normativa, mesmo que sejamos compelidos a vê-la assediada constantemente por um sem número de pretendentes, que correm atrás dela apaixonados, e que sejamos fustigados por suas inclementes chicotadas em nossas costas. Apesar de tudo, a gramatica, provavelmente no mesmo patamar que a medicina e a arquitetura, afigura-se imbatível como emulação para o aperfeiçoamento intelectual do ser, por isso rastejamos enamorados e vulneráveis, sofrendo, porque, sendo excepcional, não nos excepciona do erro.
X
Muito bem! Todos já sabem que o léxico resulta das relações sociais. Das desconstruções e construções a médio e longo prazo resultantes da faina cotidiana, que substanciam a história. Cuida-se de um ente linguístico, aliás o maior de todos, absolutamente vivo e que não para de crescer. As novas aquisições do léxico brasileiro, aquele da língua portuguesa, são palavras e termos oriundos da língua inglesa, hoje absolutamente vulnerável e tendo que repartir conosco, sem reciprocidade, suas preciosas palavras. Também é de conhecimento geral que a literatura espelhe o pensamento do dia, conforme as construções sociais vigentes no período. Vamos ao ponto: ontem, o pensamento era patriarcal, e todos escreviam sob a égide do colonialismo. O Barroco é a escola literária que melhor representa isso. Todavia, construções sociais tão longevas e duradouras têm suas raízes lançadas até o Quinhentismo e seus tentáculos prolongados até o término da Segunda Grande Guerra, alcançando as escolas romântica, parnasiana e moderna. A literatura da contemporaneidade tem fundamentos bastante diversos: das novelas brasileiras e mexicanas, passando pelos textos do cinema americano, até chegar nos membros das bancas julgadoras dos grandes prêmios literários internacionais, os fundamentos da literatura atual são outros. Um deles, que grita em meus ouvidos gerando ruídos e salta-me aos olhos cheio de sombras e contradições é a ideia do “politicamente correto”, modo muito pretencioso de julgar, pensar e comunicar segundo o qual é possível “pegar bosta de vaca pelo lado limpo”, no mais das vezes para defender teses comumente sujas ou minoritariamente interesseiras e excludentes. Compreensível, portanto, o sofrimento daqueles que resistem ao patrulhamento dos que se utilizam disso por interesse próprio. Os discípulos de Voltaire continuarão resistindo, fiquem cientes! Outro é a banalização do sexo diverso, pela exposição ostensiva do que é muito mais bonito quando é apenas elegantemente sugerido à nossa imaginação. Para conquistar o leitor, nesta seara, que não é a minha, o sexo diverso não precisa ser explícito; não é preciso desnudar corpos ardentes no cio, bastando levar o leitor pelas mãos da sutileza a que pense a respeito de suas próprias preferências sexuais. Do meu ponto de vista literário, o sexo é um poema onde a melhor rima está subentendida, e não uma luta-livre com golpes ostensivos.
XI
Na selva de pedras, no seio da qual arranha-céus projetam torres artisticamente iluminadas para o infinito, para que Olavo Bilac declame às estrelas mais perto do céu, as pessoas vivem suas próprias vidas, sem muito interesse pelos fatos ordinários verificados na vida dos outros. Do centro urbano, todo asfalto e concreto, todo barras de ferro e esquadrias de alumínio, sumiram os vira-latas e os gatos de telhado se foram, porque agora são muito altos os edifícios até para quem tem várias vidas. Só não sumiram as ratazanas e os ratões de esgoto, infelizmente. Diminuíram em número, mas cresceram em tamanho e continuam presentes. Encontrarão um meio de estar escondidos entre as fuselagens, sob as plataformas e corredores, já nas primeiras naves colonizadoras de planetas distantes. Serão os primeiros roedores heteróctones espaciais e suas pulgas draculizadas. Os beija-flores, quero-queros e bem-te-vis são apenas figuras nas paredes, convivendo com pinguins e golfinhos nas pradarias brancas das geladeiras, sobre as quais até um mamute, há milênios extinto, pode estar afixado. De resto, tudo é trânsito, movimento frenético, cheiros artificiais, comidas tão rápidas, que nos corroem o estômago por dentro paulatinamente, pessoas apressadas e mal-humoradas, com picos perigosos de estresse, acentuados pelos megafones que não param de funcionar anunciando todo tipo de mercadorias e serviços. Os grã-finos sequer descem do carro e os pobres, antes de sair de casa, diariamente, rezam várias ave-marias, para ir à cidade, trabalhar, e retornar sãos e salvos no final do dia; pelo menos têm os mais fortes anjos da guarda, não resta a menor dúvida. Você tem algo a dizer caro leitor? Espero que estejamos entendidos, porque, se não corrermos realmente, ficaremos atrasados em relação aos demais. É preciso correr, porém, se faltar firmeza, é melhor caminhar com passos seguros. Apenas não fiquemos parados, pois quem pode está passando por cima de nós de helicóptero para vistoriar suas próprias obras, para levar o olhar do dono aos detalhes do empreendimento. Acolhamos a palavra, trabalhemos suas múltiplas significações, revigoremos o discurso, escrevamos os livros necessários para o deleite dos leitores. Eis que vos apresento o nosso desiderato, a nossa mais sincera aspiração, o nosso mais profundo desejo. Escrevamos para oportunizar a leitura; sejamos assíduos leitores para apoiar os escritores em sua tarefa magna. O escritor é uma esponja insaciável que absorve pela leitura o que exterioriza pela escrita, razão pela qual, apelando à figura de linguagem, afirmo que escrever é um processo mental digestivo; se você não come livros, você não defeca livros. Não, não fiquem chocados com o inesperado verbo, porque todos esperam impacientes a hora em que a medicina, para curar inúmeras enfermidades, passe a realizar transplantes de fezes! De todas as floras, a intestinal, finalmente, provando que o intestino é um segundo cérebro, nos salvará de muitos males do corpo.
XII
Em direção ao fim, porque o próximo meio-dia se aproxima e quero ler o livro O Dia Em Que O Povo Ganhou, do professor Joel Rufino dos Santos, sobre a Conjuração Baiana, gostaria de dizer a todos, sem reservas, correndo altíssimo risco de represálias, que a gramática normativa é uma senhorita brasileira muito vaidosa, um tanto ortodoxa e ciosa de suas qualidades fonológicas, morfológicas, semânticas, estilísticas e, para realmente se sobrepor à concorrência, de sintaxe. As palavras, suas pupilas, têm múltiplas funções quando agrupadas. Quando isoladas são meras palavras, como se o léxico fosse uma imensa molécula e elas átomos flutuantes, sem nenhuma função a não ser flutuar. Ostenta várias nacionalidades no passaporte e no álbum de fotos revela várias feições diferentes. Ora se diz moçambicana e aparece linda, com os cabelos trabalhados com miçangas, as vestes coloridas e as maças do rosto proeminentes e arredondadas, ora se diz lusitana, põe as mãos na cintura, e ao invés de olhar para nós olha para a Europa. Positivamente, em muitas escolas francesas e alemãs já entrou para o currículo de línguas estrangeiras a serem estudadas pelas crianças e jovens. Aliás, com toda justiça, pois é uma das meninas mais faladas da Terra, muitas vezes mal falada, outras vezes criticada por suas complexidades, mas certamente uma das campeãs mundiais. E registro ainda que a gramática normativa é obcecada pela linguagem culta, que ama loucamente trespassada pelas setas encantadas do Cupido serelepe, enquanto, no fundo, quase nos despreza e usa para se perpetuar indefinidamente. Ainda que tão bem formada, tão rica em conteúdo, tão cheia de regras, seu suscetível coração sangra, pulsa acelerado e se mantém aberto às coisas que enriqueçam o idioma. De tão apaixonada pela linguagem, abriu a guarda e tem sido invadida por neologismos e regionalismos; tem se sentido “turbinada” e comumente corre para se olhar no espelho, confiante, cada vez mais, em seu aparato lexicográfico. É assim, empoderada, que estende seus afetos a outros pretendentes. Não demonstra nenhum remorso ou arrependimento ao ser penetrada por vários amantes. Em seus diários estão registrados, entre outros, três grandes nomes, que lhe trouxeram, e ainda trazem, palavras engendradas pela inspiração dos poetas e pela fluência textual dos escritores. Drummond de Andrade, que pavimentou estradas literárias criando novas palavras, aparece com destaque. A dupla Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, que tornaram universalmente brasileiras palavras da lavra nordestina, são festejados com fogos de artifício, salvas de tiros de canhão e gritos de viva! A gramática enriqueceu e quem saiu ganhando finalmente foi a língua. E que língua! Um fenômeno antropológico que vara milhares de quilômetros de Norte a Sul e de Leste a Oeste. De Alegrete – jamais pergunte onde fica – à Boa Vista e de João Pessoa à Tefé e mais longe. É difícil garantir sem uma análise acurada, mas não creio que existam mais que três ou quatro paralelos no mundo; talvez na Rússia, nos Estados Unidos, no Canadá de Leste a Oeste somente, porque na outra direção o frio não permite, ou na China. Embora o hindi, idioma oficial da Índia, seja falado por centenas de milhões, estas pessoas estão concentradas numa área geográfica muito menor, já que a Índia, embora um gigantesco país, é bem menor que o colossal Brasil.
XIII
Por derradeiro, nobres leitores, e a bem da competência linguística e da ética, convido a todos para que estudem “O Livro da Literatura” de Sam Atkinson e equipe, sem dúvida a primeira inspiração que levou aos pequenos textos acima, sendo, também, uma das fontes para escrevê-los, dentre aquelas consultadas. Neste diapasão, sem poder precisar o peso de cada um, pois os identifico, aqui, a cada palavra, outra grande parte da inspiração, do modelo subjetivo adotado nesta pequena obra, quase que nos limiares do inconsciente, na linha tênue entre o intelecto e a alma do escritor, veio da fluência fantástica do poeta, da capacidade de construir longos e interessantes diálogos do romancista e do poder do realismo do maior dos escritores brasileiros. Por isso devo registrar, nesta quadra literária, os nomes de Neruda, Steinbeck e Machado de Assis, o mestre dos mestres. Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos suprassumos literários advindos das profundas transformações sociais que marcaram a sociedade brasileira na segunda metade do século XIX. O Brasil, gerado no Barroco e no Romantismo, das Bandeiras desbravadoras e devastadoras, do ufanismo de uma jovem nação recém libertada das amarras exploratórias do Pacto Colonial, emerge para o realismo de uma sociedade urbanizada, com repulsa à escravidão, que finalmente conhecerá a indústria, ainda que tudo isso tenha levado tempo para efetivamente se consolidar e em que pese a mentalidade retrógrada da elite latifundiária, que impunha ter o Brasil apenas a vocação agrícola. Hoje, sabemos que o Brasil é o celeiro, a fruteira e a verdureira do mundo, mas também sabemos que somos multivocacionados. Então, só nos resta festejar: viva a literatura brasileira!
Até breve, caro leitor.