As amantes do português (Milton)

AS AMANTES DO PORTUGUÊS   

MILTON  MACIEL

 

O português era conhecido em todo o bairro, o que era simplesmente um contrassenso, porque ele havia chegado ali há menos de seis meses, tempo que levava de vida no Brasil. Mas Manoel José era mesmo um homem muito diferente. Diferente e diferenciado. A começar pela profissão: encadernador e restaurador de livros. E um senhor encadernador!

Pouco depois de se estabelecer com sua pequena oficina, foi oferecer seus serviços à biblioteca municipal. Levou amostras e fotografias. Todas as bibliotecárias adoraram e logo Manoel José teve muitas encomendas. Ainda bem que ele trabalhava mesmo muito bem, porque o que todas as bibliotecárias adoraram foi o Manoel José, não as suas amostras e fotografias.

Acontece que o encadernador português era um homem absurdamente bonito. Alto, forte, músculos bem delineados, porte atlético mais para o delgado, pele alva e cabelos pretos, longos e encaracolados ao natural E tinha os olhos… Ah, os olhos do português eram azuis claríssimos, como água-marinha, coisa raríssima de se ver numa pessoa.

As mulheres ficavam loucas pelo português, não só as bibliotecárias. Todas. Por isso ele ficou imediatamente conhecido no bairro. Porque chamava atenção demais onde aparecesse. Porque as mulheres se derretiam ou se excitavam. Porque os homens dessas mulheres ficavam possessos de ciúmes.

Logo correu o frisson pelo bairro, as mulheres dizendo que ele era o homem mais lindo do mundo. Os homens, naturalmente, dizendo que ele era viado. (Isso mesmo, com i, para não confundir com o Bambi e sua família). lia). Todo homem com inveja de homem bonito diz que o cara é viado. Isso é clássico, chega a ser proverbial. Bonitão? É viado! A mulherada corre atrás? É viado…

Pois a mulherada corria atrás do português mais que mosquito da dengue atrás de calcanhar. E o português não era viado coisíssima nenhuma. Pelo contrário, era muito do homem. Mas, como não existe nada perfeito neste mundo incompleto, também o português tinha um defeito. Ele era CASADO!

Não, o problema não era ele ser casado. Para isso a mulherada não ligava. Uma corna a mais, uma corna a menos no mundo, não fazia diferença. A mulher dele que se lascasse, a maldita, por que só ela podia comer do bom e do melhor?

O problema verdadeiro, onde a coisa pegava, é que o Manoel José era FIEL! Por mais que fosse cantado, ele apenas reagia rindo, levava na brincadeira, desconversava, falava nas crianças e na esposa – Desgraçada!

Alguns poucos homens, uns 5 por cento, se aproximaram, não exatamente para propor amizade ou defendê-lo das fofocas dos outros homens. Mas para ver se o levavam para a prevaricação. Faziam convites e ofereciam, desde umas lolitinhas fogosas até levar o portuga para a zona mesmo. Nada feito. Ele ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Hum, devia ser muito gostosa, precisavam chegar junto dessa portuguesa e conferir se ela afrouxava! Mas não teve jeito, o português não prevaricou. Logo, era viado mesmo! Levaram a confirmação para os outros 95 por cento. Fez-se a unanimidade. Que, segundo Nelson Rodrigues, é sempre burra.

As mulheres não se conformavam com a falta de atenção daquele Adônis. Suspiravam pelo Apolo, faziam propostas indecentes, umas passavam-lhe a mão na bunda, outras preferiam ir direto no vizinho da bunda, o vizinho da frente. Mas o português se esquivava, sempre gentil, ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Maledeta! bruxa, sarnenta!

E a mulherada já sabia, pelo relato das afoitas que apalparam o tal vizinho da frente, que elas encontraram substância, que ali havia coisa de respeito, consistente, avantajada, deitando por terra os outros rumores que os homens despeitados vivam espalhando: ‘É broxa!” Mas tava na cara – que dizer, na mão – que não era. “É pirulitinho, coisinha de nada!” Não era!

Desgraçado! Bonito demais, forte demais, casado, fiel (viado!) bem dotado (f da p!), grande profissional, honesto (p q p!). Aquele maldito tinha que ter um ponto fraco. Todos têm. Não dava nem para fazer piada de português com o sujeito. Era culto, inteligente, bem educado, tinha casa própria – e boa – não chegara de Portugal sem dinheiro como os outros, uma mão na frente, outra atrás.

Finalmente os homens e as mulheres chegaram a uma conclusão sobre qual poderia ser o fraco daquele homem tão tranquilo e, ao que tudo indicava, tão fiel. Agora sim! Estava na cara, o safado era um bom come-quieto! Não queria nada com elas, não aceitava transar com as que os homens lhe ofereciam porque… TINHA AMANTES! Essa era a explicação, só podia ser: as amantes do português! Quantas seriam? Muitas, é lógico. Um homem como ele!…

Vivia saindo de casa. Viajava quase toda semana. Dizia que ia a trabalho. A mulher, idiota, além de uma nojenta metida, acreditava. Imbecil! Ora, o português ia prevaricar, isso sim! Dessa forma, nem aquela tapada, nem os espertos vizinhos e vizinhas podiam descobrir nada. Safado! Sem-vergonha! Falso!

Então era isso! E esse boato, repetido por mulheres e homens sem cessar, acabou virando uma verdade universal. O homem era lindo como um anjo, mas era falso como uma cobra. As encomendas secaram na biblioteca. Depois na Universidade, poucas faculdades lhe sobraram como clientes. As bibliotecárias estavam ofendidíssimas. Mas isso não fez diferença alguma, o homem saía, ia para outros bairros, viajava para outras cidades e trazia sempre mais encomendas. E ia ver suas amantes, o patife, claro! Só aquela pernóstica não via isso. Depois, porque sua grande qualidade foi ficando conhecida, começou a receber pedidos de outras cidades e até da capital da república. Maldito! O que tinha de falso, tinha de rabudo, vá ter sorte assim no inferno!

 

A portuguesa

A mulher do Manoel José era a Maria Joaquina. Uma unanimidade entre as mulheres locais: um nojo, um vomitório! Toda emproada, só porque não era feia. E daí? Era antipática como ela só. Sim, era elegante. Sim, se vestia muito bem. E daí, se era uma corna imbecil. Bem feito! E toda metida a sebo, só porque o mentiroso vivia falando bem dela para todo mundo. Que amava a esposa, o que! Um falso! Que raiva!

Uma convencida, só porque o menino e a menina dela eram os melhores alunos da escola. E daí, grande coisa!

Mas o pior é que a desgraçada, com menos de um ano no Brasil, já era primeiro violino da Orquestra Sinfônica.  Era claro que tinha o rei na barriga por causa disso. Esse pessoal metido com música clássica… tudo esnobe!

Mas Maria Joaquina tinha seu próprio defeito. Aliás, o óbvio: Era um poço de ciúme! Vivia examinando os bolsos, cheirando as camisas, examinando as contas de telefone do marido. Nada! Tudo sempre perfeito. Mas ela sabia das conversas da vizinhança: que o marido tinha amantes! Que viajava para vê-las. Maria Joaquina sofria com essa boataria toda. Recebia cartas e telefonemas anônimos, a maldade das pessoas era patética. Queriam porque queriam que a mulher descobrisse algo e isso viesse lhes lavar as almas maledicentes, justificar as línguas bífidas viperinas.

Envenenaram completamente a alma de Maria Joaquina. Mas não contavam com que ela tivesse tanta classe e finesse. Ela não demonstrava nada, nunca. Era como se não recebesse as cartas e os telefonemas, revelando as armações do canalha. Ficavam as mulheres e os homens se roendo por dentro. Tinham cólicas de impaciência. Engulhos de revolta. Aquela sangue de barata! Covarde! Corna mansa!

Mas nem para armar uma boa briga, uma gritaria, uns tapas, não importava quem batesse em quem, botar o mequetrefe para dormir no sofá da sala. Nada! Chegava uma carta cabeluda e viam a mulher receber o marido com beijos e abraços. Não, tem cada pessoa sem fibra neste mundo…

As duas amantes do português

Mas um dia Maricotinha chegou com a bomba! Tinha descoberto as amantes do português. E eram logo duas! Quem tinha contado tudo era uma tia dela, de mais de oitenta anos, meio surda, mas que era uma consagrada autoridade em termos de fofoca pesada. A velha tinha ouvido o filho dela, professor da Universidade, falar das tais amantes do português. A cobra velha foi manobrando como quem não quer nada, e cada dia ia tirando uma informação aqui, outra ali do filho incauto. E ligava em seguida para Maricotinha. Que corria os proclamas pela vizinhança. Que escalava quem ia recortar as letras das revistas, quem ia colar no papel, quem ia colocar o envelope na casa da antipática, madrugada alta.

Assim Maria Joaquina foi se inteirando aos poucos da realidade e da descrição das amantes do marido. Sofreu muito com a nova e dura realidade e mais ainda porque aquilo acabava dando razão àquela gente horrorosa, No fundo ela sempre estivera esperando por aquilo. Manoel José era bonito demais, como iria poder resistir a tanto assédio, afinal era só um homem e os homens… Sofreu muito mais, mas muito mais calada que antes resistiu.

Então chegou o grande dia. As amantes do português, que eram, as duas, professoras da mesma faculdade do filho da velha Felisbinda, iam estar juntas numa solenidade.  Por isso ele sabia tanto sobre elas, eram suas colegas! Por isso o português enganador tinha contato constante com elas, pois essa faculdade era aquela que ainda lhe dava bastante serviço de encadernação e restauração de livros. A toda hora ele ia buscar e entregar livros lá. Safado!

A velha Felisbinda ficou tão entusiasmada com a última notícia que arrancou do filho, que foi quase correndo para o telefone, e, cuspindo muito, de tão excitada que estava, deu todo o serviço para Maricotinha. Mas estava tão animada com a fofoca que, depois de destilar todo o veneno, esqueceu de segurar direito no andador e estatelou-se no chão. Nunca mais saiu da cama, até morrer, meses depois. Mas entrou para a história do bairro como uma autêntica heroína, uma combatente da grande causa, uma mártir, em resumo.

Então a grande noite chegou. As duas sirigaitas, as amantes do português, que eram, imagine-se só, muito amigas entre si, iam estar no palco do auditório da faculdade, na tal solenidade. Uma das vagabundas se chamava Shirley. A outra rameira era uma tal de Elisângela. Os sobrenomes não interessavam, uma vez que iam estar as duas no palco. Maricotinha não perdeu tempo com isso, tinha uma memória ruim, que estava começando a falhar ainda mais depois dos sessenta anos.

A filha e a nora de Maricotinha capricharam na carta anônima. O marido da filha caprichou no telefonema anônimo. E o padeiro, que levantava muito cedo mesmo, foi, como sempre, enfiar o envelope nas roseiras que sobressaiam ao muro baixo da frente da casa da enxerida. Ah, mas agora aquela nojenta ia perder aquela cara de nojo, aquela empáfia. Agora ela ia se escabelar e chorar! Choro e ranger de dentes, coisa boa, haha! Maricotinha esfregava as mãos, comovida.

E Maria Joaquina mordeu a isca. Muito bem vestida, reconheça-se, pegou um taxi e foi até a tal faculdade. Localizou o anfiteatro, entrou, ficou quietinha lá no fundo. De lá foi ficando cada vez mais impressionada: o bairro inteiro estava entrando também. Reconheceu dezenas de pessoas de vista. A arqui-fofoqueira Maricotinha e a família em peso, o padeiro, o carteiro, o gerente do posto de gasolina, as vizinhas das duas casas ao lado. Maria Joaquina compôs-se ao máximo, não iria dar esse prazer àquela gente. Mas, ainda assim, eles estava jantando tudo aquilo, sabiam que ela estava lá, a velha Maricotinha, lá da frente, chegava ao desplante de olhar toda hora para ela usando binóculos de teatro, na maior cara-de-pau.

A cerimônia começou. Falou primeiro a diretora da Faculdade de Letras. Era de Letras a faculdade? Bem, isso o pessoal não sabia muito bem o que era mesmo, o padeiro pensou que era o lugar onde se ensinava caligrafia, o ajudante de marceneiro achou que era onde ensinavam a pintar letreiros de propaganda. Mas enfim, não vinha ao caso, porque, naquele momento glorioso, a diretora chamou as duas professoras para comporem a mesa de honra:

– Professora Shirley Escostegui Passos – Literatura contemporânea de Portugal

O aplausos foram gerais, exceto, é claro, do pessoal do bairro. Afinal aquela era uma das putas descaradas. Toma, corna mansa! Faz cara de superior agora! Pois a tal Shirley era um pedaço de mau caminho. Jovem, um corpão violão, uma bunda de cinema!

– Professora Maria Elisângela Donato – Literatura colonial brasileira

Uma explosão ainda maior de aplausos. Mas o pessoal do bairro arregalou os olhos, incrédulo. Maria Joaquina, também: a tal Elisângela era um tribufu! Magra e alta, meio velhusca, óculos de fundo de garrafa, um aparelho maior do que ela nos dentes. Português tarado, comia a mocinha gostosa bunduda e comia a velha esquisita sem bunda. Mas gosto é gosto, tara é tara e o importante é que a emproada a esta hora devia estar desmanchada por dentro, bem feito!

– Ela não tira os olhos da morena bonita! Toma, nojenta! – cochichou Maricotinha para a nora, que queria porque queria pegar o binóculo da mão da sogra.

Lá em cima chamaram mais um monte de gente graúda, professores, representante do governador e o escambau. O pessoal do bairro morrendo de impaciência que aquela xaropada terminasse, não viam a hora de chegar o desforço físico, agressão, a portuguesa emproada baixando de nível, rodando a baiana, reagindo como uma mulher normal, enfiando as unhas nas caras das duas vagabundas. Sangue!

Mas a coisa não acabava mais. Houve declamação de poesia, discurso de político, até que chamaram ao palco o professor Viriato, que tinha se atrasado porque sua velha mãe sofrera uma queda no dia anterior e ele estava com ela no hospital. Mesmo assim o filho único da velha Felisbinda não deixou de cumprir seu dever e veio fazer sua parte na cerimônia. A ele cabia o discurso de premiação e dirigir a entrega dos troféus e medalhas aos vencedores do ano, razão da grande solenidade. Agora sim, a coisa chegava ao fim, o próprio professor Viriato anunciou. A cambada do bairro toda se agitou, dezenas de cabeças se voltavam para trás a toda hora, esperando ver o momento em que a portuguesa ia levantar e partir para enfrentar as rivais. Aquelas duas putas! Iam ter o que mereciam também!

Então o professor Viriato chamou as duas vagabundas à frente da mesa, câmeras de televisão e luzes fortes se voltaram para ambas. Duas sorridentes alunas saíram de trás das cortinas do fundo e vieram colocar uma medalha no peito de cada uma das sirigaitas, que estavam inchadas de orgulho. Ordinárias! Quem te viu, quem te vê! Quem não te conhece que te compre! Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento!

Então o professor falou suas curtas e objetivas palavras:

– Em nome da Egrégia Congregação desta casa e de todos os professores, funcionários e alunos desta faculdade, eu tenho a subida honra de entregar este, que é nosso mais importante prêmio anual, em reconhecimento ao que estas duas colegas abnegadas fizeram pela preservação e pelo ensino da nossa literatura e do nosso idioma. Recebam, nobres colegas Shirley Escostegui Passos e Maria Elisângela Donato, das mãos de nossa estimada diretora, o diploma e o troféu de AMANTES DO PORTUGUÊS 2019!

Os aplausos foram gerais, eufóricos, demorados, em pé. Menos, é claro, por parte do povo fofoqueiro do bairro, um monte de gente sentada, com cara de desenxabidos, clima de enterro, murchos de decepção.

Então amantes do Português se referia ao IDIOMA?! Maldita velha Felisbinda! Fofoqueira miserável! Que morresse toda quebrada, infeliz! Dezena de olhos furiosos se voltaram para Maricotinha e família. O açougueiro, que estava ali a pulso, trazido pela mulher, fez-lhes um sinal, passando a mão espalmada pelo pescoço – Ah, mas eu corto!

Quando os aplausos silenciaram, contudo, não se fez silêncio na plateia. Uma mulher jovem, extremamente bonita, extremamente bem vestida, levantou de seu lugar no fundo e veio andando pelo corredor entre as cadeiras. E gargalhando. Ela olhava para certas pessoas na plateia, apontava o dedo para cada uma delas e não conseguia segurar a gargalhada. As pessoas não faziam nada, sentadas estavam, sentadas ficavam, abaixavam as cabeças, praticamente as enterravam no peito.

Aí a moça bonita subiu ao palco, junto com muitas pessoas que subiam também para cumprimentar as duas homenageadas da noite. Chegou-se às duas, tomou a mão de cada uma simultaneamente nas suas e falou bem alto:

– Muito obrigado, senhoras Amantes do Português. Eu lhes agradeço muito – e deu um beijo em cada uma.

Depois, deixando as duas professoras ainda perplexas, chegou bem na ponta do palco e falou para um grupo de pessoas que procuravam deixar a sala o mais rapidamente que podiam, empurrando-se, pisoteando umas às outras, trocando palavrões:

– Amantes do Português! Pois subam cá a cumprimentar as Amantes do Português, seus vermes. Suas mal-amadas! Seus paneleiros!

E a moça falava o português perfeito dos que tinham estudado na Universidade de Coimbra.

Agora tinha lágrimas nos olhos. Lágrimas de contentamento. E de arrependimento, Tinha muito o que confessar a Manoel José. Desconfiara dele mais uma vez! Ele não merecia… Tinha dezessete cartas anônimas para lhe mostrar. Suplicaria seu perdão. Não merecia aquele homem tão bom e tão honesto. E tão bonito, olhos de água-marinha… Ah, Manoel José!…

Foto: Kostas Martakis, cantor grego (calma, leitoras, o google não vai fugir, podem dar um google nesse nome mais tarde também. Deixem o maridão, o namoradão sair de perto, senão vão ter que aguentar, irritadas, o cara perguntando, enciumado: Quem é esse viado?!

 

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