Bastaram segundos (Donald Malschitzky)
Bastaram segundos
Donald Malschitzky
Todos achavam que Vó Gio chegaria bem ao novo século, cujo alvorecer já se avizinhava. Século 22, o que lhe reservaria? Uma queda boba, mas isso a medicina não conseguiu resolver, bateu a cabeça e morreu. Foi ao tentar correr, rindo das peraltices de Luiza, a bisneta mais nova. O que pouco se sonhava quando ela ainda era jovem, agora era rotina: sem burocracia, sem autorizações especiais, porque o bom senso já vencera a obtusidade. Alguns de seus órgãos foram doados para transplantes, apesar da idade. A cerimônia fúnebre foi breve e leve, e sua serenidade foi lembrada. Em 2095, Vó Gio morreu, aos 98 anos.
Brincavam de conhecer lugares, Vó Gio e as netas. Quem errasse, saía e tinha que pesquisar até achar a resposta para voltar ao jogo. Passando dos 80, nunca foi derrotada, embora conhecesse, no máximo, o mesmo número de cidades, países, aldeias e montanhas – e rios, lembrava ela, – que as netas. Vencia-as na perspicácia. Tinha um truque infalível: a cada espaço, colava na memória um momento bom. O beijo apaixonado que Antônio lhe deu nas Bodas de Diamante na viagem de veleiro pela Ásia, a câmera fotográfica que encontrou perdida ou esquecida perto do Kilimanjaro, e que ainda usava filme e funcionava, o silêncio branco na Sibéria, a vez em que conseguiu chegar em tempo para o nascimento do neto na nova cidade tecnológica sueca, a primeira manhã sem poluição em São Paulo, o jogo de despedida de seu ídolo, aos 53 anos. Sabia que tinha que acontecer; ainda assumiria um cargo importante no banco. Era jovem, mas experiência não lhe faltava. Nem competência. Não respeitava todas as regras do banco, simplesmente fingia que não conhecia aquelas que achava injustas, e trabalhava de outra forma. Todos queriam ser de sua equipe. Inovou, cresceu e alcançou resultados muito acima do esperado. Só não esperava ser convidada para a vice-presidência com 32 anos de idade. Em 2026, ela e Antônio mudaram-se para Bruxelas.
Conhecer Antônio foi o que de melhor lhe acontecera. Para sempre. Tinha 20 anos e nunca mais se desgrudou dele.
No dia 25 de novembro de 2013, Giovana estava a 170 km/h quando bateu com seu carro contra a pilastra. Em segundos, apagou todo o futuro possível.
Esta crônica é de 2013. Infelizmente, só o último parágrafo é verdadeiro. O restante é a vida possível jogada fora por irresponsabilidade no trânsito.