Cachaça, já tenho… (Hilton Görresen)

 

CACHAÇA, JÁ TENHO…

Hilton Görresen

 

Antes que o prezado leitor me tenha em conta de pinguço, cachaceiro e outros adjetivos de significado etílico, devo esclarecer que não é de minha pessoa que estou falando (ou melhor, escrevendo). Há algum tempo, em frente a um supermercado, um provável indigente me abordou, de modo alegre e folgazão:
– Amigo, se der, na saída me traga alguma coisa pra comer. Cachaça já tenho!
Sua sinceridade folgazã me fez sorrir. Estava ali um bêbado confiável. Não com as feições falsamente compungidas de quem nos pede uns trocados para matar a fome e, quando viramos as costas, se joga às bebidas ou às drogas. Lembrei-me imediatamente de um personagem de minha São Chico: Osvaldo Gambá. Até certa época, Osvaldo vivia de pequenos trabalhos para as famílias, limpava quintais, dava recados, buscava água na fonte da Carioca. Depois entortou a vida, entornou a água; aliás, pelo jeito não colocava mais água na boca, Deus o livre. Vivia bêbado, com aquele jeito sonso e molenga dos cachaceiros de carteirinha, os olhos semicerrados, o carão sem-vergonha. Quando pedia trocados, logo ia dizendo: Não quero mentir, é pra bebida mesmo!
Desse jeito, o que poderia dizer ao nosso personagem atual? Não gosto de me sentir enganado, desconfiar que minha contribuição, mesmo que insignificante, vai concorrer para manutenção do vício de alguém, daqueles que morrem de fome, mas não deixam de tomar sua cachacinha. Este não, este era um pedinte honesto, não pedia para alimentar o vício, isso já estava garantido. Sua pretensa sinceridade (ou seria somente um golpe de marketing?) amoleceu este coração de cronista e não me esqueci de lhe reservar uma bandeja de mortadela. Pensei em presunto, mas acho que ele não iria notar a diferença.
Se ele tivesse se referido ao fumo (cigarro já tenho…), não lhe teria dado a confiança de trazer bandejinhas de alimento, pois detesto o fumo; a cachaça que ele bebe não me faz o mesmo mal que a fumaça que solta a meu redor. Folgado, continuou sentado de encontro à parede, as pernas esticadas na calçada, com seus apetrechos ao lado.
Na saída do supermercado me assaltou a dúvida: será que não iria achar insuficiente minha “doação espontânea”, será que o bom humor que havia me proporcionado, nesta época em que só as más notícias nos dão o ar de sua desgraça, não mereceria compensação mais valiosa?
Mas quando abriu a sacola, vi seus olhos brilharem, a satisfação rolar em suas barbas escuras. E falou, enquanto eu me afastava:
– Pra mim, mortadela é filé mignon!

 

TEXTO PUBLICADO DO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 28.01.2023

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