Cartola, o divino (Joel)
Cartola, o Divino
Já disse muitas vezes do esforço da escrita. Seria uma blasfêmia falar em desânimo, uma vez que escrever é esticar a alma do avesso. Também já contei uma porção de vezes sobre a dimensão confessional dessas crônicas, condição que se estende também a poemas e à ficção literária. Daquilo que se cria, nada é essencialmente invenção. Prefiro mesmo os trabalhos braçais aos do intelecto. Nasci lavrador. Toda criança da roça, além das lides no eito, foi lenhador e também carregador de água. Desde aqueles tempos, na mata ou na fonte, enredava minhas incumbências em fantasias. Isso tornava leve o trabalho pesado.
E foi como menino de roça que entrei numa escola pela primeira vez para aprender as letras e os números. O mundo impalpável das palavras se mostrou encantatório para o garoto quieto que tecia colóquios com a solidão. Mas nunca tive mãos de segurar o lápis, a escrita ficou um suplício indesatável e a melancolia tornou-se mar à minha deriva. A vida campeira é dura, mas quando cai a tarde, o corpo alquebrado se recompõe em algumas horas de sono. Já essa coisa de fazer versos ou lapidar frases bota uns gonzos a ranger dentro da gente, umas inquietudes que descanso nenhum consegue tirar. Uma alma roída não se recupera numa noite dormida. Por isso gosto de serviços braçais, desses que cobram seu quinhão em cansaço, mas tornam tão genuíno pisar o chão com uma botina sem meia. Agora mesmo, trabalhando num andaime de obra em restauro, onde o braço e a coluna se esfalfam, recobro a suma doçura de suar fatigado. E a cabeça fica livre para burilar palavras ao vento, sem papel nem intento.
Amanhã, 11 de outubro, é aniversário do Agenor de Oliveira, o Cartola, o poeta maior do samba. Uma genialidade singular, que gravou seu primeiro disco solo aos 66 anos de idade. Até então, teve uma vida aos trancos e barrancos. Já era o grande Cartola quando, num dos reveses da vida, foi lavar carros na Lapa para ganhar o pão. Com admirável singeleza ele disse que, se tivesse vencido na vida mais cedo, logo teria se acabado, “acho que teria me envaidecido com a glória”. Por fim, no momento mais certo, deixe-me ir.
Crônica de Joel Gehlen, publicada em A Notícia, 10/10/2019