Chão bruto e miserável (David Gonçalves)
CHÃO BRUTO E MISERÁVEL
David Gonçalves
Naquele estradão deserto. De lado a lado campos de soja intermináveis. Nenhuma sombra. Um lagarto rajado, pançudo, fugiu rapidamente levantando poeira vermelha. Dois andarilhos, desanimados, gastavam os chinelos. Iam para Quadrínculo. Souberam que lá havia fartura.
Era domingo. Já tinham perdido a missa da manhã. Justamente, quando os bondosos fiéis, condoídos pelo sermão do pároco, ofereciam bom dinheiro aos pedintes. Desanimados, batiam as solas gastas na terra seca e quente. O sitiante caridoso os colocou na carroceria da caminhonete, junto com dois cachorros e um galo de briga.
Chegaram a Quadrínculo na tarde ensolarada, o estômago grudado às costas.
Cidade deserta e mormaço de agosto. Uma senhora bondosa, espanhola gorda, ofereceu dois pratos de arroz e feijão, e aquilo foi uma bênção. Dormiram debaixo da árvore na calçada desigual. Sonharam. Estavam ricos e eram donos de Quadrínculo.
Um sonhou que tinha uma fazenda de gado; outro, que era dono e senhor de uma boate, rodeado de ninfas audaciosas. Nem ouviram o trem da tarde nos trilhos ressecados.
Acordaram suados.
Estavam, agora, na praça, à espera de movimento. Viram a caminhonete passar na avenida, desabalada.
– O que aconteceu?
Não sabiam. Precisavam esmolar para salvar a noite.
Num canteiro de grama e flores, bêbados aloprados riam, xingavam e dançavam pretensa música invisível.
Aquela gente não nos pertence – disse um deles, o mais alto, apontando a meia dúzia de bêbados enferidados.
– Mas por quê?
– Eles envergonham os andarilhos, entende? Nós medimos o mundo. Sabemos das coisas. Eles bebem e apodrecem em vida, e rodopiam no mesmo lugar, o cérebro feito uvas passas. Nós somos livres como o vento.
– Sei lá, disse o outro, mirando o cemitério de bêbados. – Acabamos no mesmo lugar, prato cheio para os vermes.
– Nós, os andarilhos, temos dignidade até ao pedir um prato de comida.
Agora, um pretenso político discursava no coreto.
– Vê só, mano velho, que cidade próspera, gente abonada, carros e caminhonetes novas. Mas não são ricos como a gente.
– Somos pobres e miseráveis. De onde você tirou essa ideia de riqueza? Nada temos.
– Aí que se engana: não possuímos um naco de terra, mas o mundo todo nos pertence. Isto é a verdadeira riqueza.
– Sei lá. Eu daria tudo para tomar um banho decente, com sabonete cheiroso.
– Vamos naquela casa de misericórdia. Quem sabe, conseguimos banho e cama.
Estavam para se retirar, quando…
Mundo estranho, repare bem. Praça cheia mas quase ninguém conversa. Todos no celular, falando e falando, com gente ausente. Tiram fotos de si mesmas, sorriem, e mandam não se sabe pra quem. Parece endoidecidos. Prefiro a praça de antigamente, onde se ouvia boas conversas.
– Eu queria um celular. Só pra registrar os lugares bonitos que se abrem nos caminhos.
– Mandar pra quem? Deixa de ser besta.
– Você é contra o que novo, por quê?
– Pra se viver, a gente não precisa de muitas coisas. Os animais não estão preocupados com muitas coisas.
– Mas eles são bichos. A gente tem sonhos.
– Quem diz que os animais não sonham?
Andavam no meio das pessoas e conversavam.
– Estas meninas tão lindas, princesas, cheirosas, até o vento as persegue, e nós aqui sem tomar banho, fedorentos, degradados. Ah, como gostaria de ter uma companheira assim! Por Deus!
– Pois não é pra nós. Elas jamais aceitariam o viver da estrada, rodando de um lado a outro.
– Quem sabe, um dia me canso desta vida, e resolvo me estabelecer, num pedacinho de terra, encravado entre montanhas. O que acha?
– Bobagem, essas meninas querem muito mais, não se contentam com pouco. A maioria dos homens gosta de uma prisão, e o que você fará quando acordar de manhã, e sentir uma vontade doida de pegar a estrada?
– Sei lá! A liberdade cobra caro…
A praça fervilhava. Uma banda ocupara o coreto e a música inebriava. Rapazes lançavam olhos cobiçosos nas adolescentes que cheiravam a lavanda. Os dois andarilhos haviam amealhados uns sanduíches e poucos centavos. Estavam cobiçando o carrinho de algodão-doce. Mas o homem os olhava com cara de poucos amigos, como se dissesse Sumam, vocês fedem.
Pretendiam banhar-se.
– Parece que estou carregando gambá morto debaixo dos braços.
Sabiam que a casa Senhor dos Amparos, sustentada por religiosos misericordiosos, oferecia acolhimento, e estavam para deixar a praça, porque no dia seguinte havia estrada longa.
– Eles vieram na caminhonete! – ouviram alguém dizer. – Eu vi.
Dois policiais os agarraram. Foram conduzidos à delegacia. Estavam perplexos. O que havia acontecido?
– O que andaram aprontando, seus vagabundos? – voz gutural e hercúlea do delegado.
Nada, responderam.
– O que roubaram do Armelindo?
– Que Armelindo???
– O da caminhonete verde. O que fizeram com ele?
– Ah o sitiante da caminhonete… Sujeito bondoso, deu carona, nos livrou do sol escaldando.
– Esse mesmo. Roubaram e assassinaram. Tenho provas.
– Deus do céu! Ele deixou a gente na entrada da cidade. Foi embora com os dois cachorros e um galo. Nós ficamos por aqui.
– Conversa mole. Encontraram o corpo.
– Sabe, senhor doutor, a gente não matou ninguém, a gente é do mundo, mas tem as mãos limpas.
– Então, podem explicar que o homem foi morto a porradas, com este bastão de grevira. É de vocês, não é? O que dizem?
Os andarilhos estavam espantados, olhos arregalados.
– É meu, sim. Havia esquecido na caminhonete.
– Rebentaram a cabeça dele. Com este porrete. Olha as manchas de sangue. Prova fatal.
– Resta saber onde está a caminhonete?
– A gente nunca precisou de caminhonete, senhor doutor! No começo da noite ela passou veloz na avenida. A gente gosta mesmo de gastar o solado nas estradas.
– Então pra quem venderam? Cadê o dinheiro? Guardas revistem esses dois.
Revistaram. Encontraram dez reais sujos, um pouco rasgados, e um crucifixo enferrujado.
– Guardaram a grana em algum oco de pau?
– Foi o que conseguimos na praça. É pra comprar pão e mortadela.
– Vocês são o rastolho. Por onde passam nem capim nasce. Gentinha à toa, que nada tem.
Os andarilhos estavam assustados. O delegado mexia o grosso bigode e arrotava ofensas.
Nisto, o celular tocou. O delegado fez uma careta de nojo, Eu aqui perdendo tempo com dois bostas, arre!
Desligou o telefone. Gritou:
– Caboooo! Pega a viatura e mais dois e se jogam pra Apucarana. Tem novidades…
Depois mirou os andarilhos, enraivecido, batendo os punhos na mesa:
– Isto não fica assim! Guarda, coloque estes dois atrás das grades. Ninguém sai ileso de minha região.
Foram empurrados na cela.
– Uma lição vai bem – ouviram o delegado desabafar. – Que domingo!
Esfomeados, recostaram-se na parede da cela e dormiram. Foram despertados na segunda-feira de manhã, bruscamente:
– Podem sair. Desapareçam!
Insones e fracos, procuravam a saída da cidade, desiludidos.
– Chão miserável e bruto – disse um deles, enraivecido.
– Que o céu desaba sobre minha cabeça, mas nunca mais pisarei nesta terra – disse o outro, chutando os pedregulhos da estrada seca.