Chuva de arroz nas serras (David Gonçalves)

CHUVA DE ARROZ NAS SERRAS

David Gonçalves

Chamavam-se Salíndeo e Ornélias. Iam-se casar na capelinha que nem padre tinha, entre as montanhas. O vigário, de vez em quando, aparecia por lá, mais como missionário. O arraial era um amontoado de casas pobres, cobertas de sapé ou de tabuinhas serradas desiguais. Agosto ia pelo meio; o descortinado de fumaça das queimadas de pastagens cobria os morros.
Casavam-se. Pouca gente, mas asseada. Fora da capela gasta pelo tempo, alguns rojões. O noivo – alto e magro, bigode ralo sobre os lábios finos – sorria intermitente. Que história! Tantos desenganos, ele se achava construindo a saudade que conforta quando chega o outono.
Era de boa origem: um dos filhos do fazendeiro Gonçalves. Era pau de virar espeto, de tanta malandragem. Mas caíra nas graças de Ornélias, filha de Santônio Eurides. Numa rara quermesse, naquela mesma capela, num baile de colônia, depois da missa de padre Deuteronômio, dançou a noite toda com a moçoila. Enleou-se naquele cabelo loiro como espiga de milho.
Então, apaixonou-se… Um peão matuto, acostumado à vida dos currais, afeito a façanhas incríveis, desde pequeno a pegar araçá a unha, caiu como mosca no melado. De uma hora para outra, alguma coisa de estranho e felicidade o tomou. Por onde ia, em sua cabeça, rodava a presença plena de Ornélias. Achava beleza em tudo: na ciranda do sol nascer, nas tardes de calor, nos voos retilíneos dos pássaros ao escurecer.
Amor é destino? Coisa de Deus? Sabe-se lá! Para o amor, há os contras. As duas famílias, por questão de terras, não se comungavam, e já havia duas mortes, uma de cada lado. Viviam em paz, a grosso modo, mas separados por antiga cortina de raiva. Por isso, aquele baile, com os dois dançando no assoalho de madeira, despertou na população conversas desencontradas. Aquele namoro daria em tragédia.
Houve outro baile. Não houve missa, só um terço. Depois, o baile: gaita, violão e pandeiro. Lá estava os dois. Salíndeo perfumado, roupa nova, barba feita e o bigodinho ralo pendurado sobre os lábios, olhar sonhador, impaciente.
– Ela viria?
Mandara recado semana antes. Esperava-a ansioso. Não tinha olhar para as outras. O povo ria dele, às costas. “Coitado”, diziam, “está sonhando com o impossível…” Já estava cansado da espera. Aborrecido, nem conversava com os companheiros.
– Seu bobo! Ela não virá… É muita areia pro seu carro!
Angústia e ansiedade já se misturavam com a raiva. Por que não ia embora? Mas não: continuava plantado no canto do salão. Sobreveio-lhe o desejo de beber cachaça até sentir o cérebro amortecido.
Eis que, de repente, houve um murmúrio abafado no salão. Lá estava ela: uma princesa, os cachos dos cabelos loiros sobejando os ombros. Talvez, o povo tinha razão: era muita areia para o seu carro. Merecia tanta beleza?
Junto com ela, os três irmãos. Logo se espalharam pelo salão e também se ocupavam com as moças e começavam a dançar. Percebia-se que eles não tiravam os olhos de Salíndeo. Haveria briga, naquela noite, com certeza.
– Pequeno não é pedaço; grandalhão não é dois – ruminou Salíndeo, disposto à morte, ou fosse o que viesse.
Comentava-se pelos cantos que os três irmãos iriam surrá-lo até deixá-lo em carne viva. Deu-se o surpreendente: Ornélias veio em sua direção, sorrindo, e o convidou para dançar. O povo ficou mais banzeiro. Que audácia! Será que ela não sabia das maldades dos irmãos?
Salíndeo sentia-se no céu dançando aquela valsa. Estaria cego? Não pressentia o perigo? O amor faz loucura… Dançava no fio da navalha. O que viria depois?
Valsa terminada, sentaram-se nos fundos do salão num banco de madeira. Lá ficaram por horas. Conversavam, riam, trocavam olhares apaixonados. Os irmãos vigiavam, enquanto dançavam.
Meia noite. Havia cheiro de suor e cachaça misturados com perfume e pó-de-arroz no salão. Os irmãos já haviam bebido demais. O mais novo até cambaleava. O mais velho mostrava-se azedo, carrancudo, encruado. Veio esbarrando nas pessoas e se postou na frente deles: mudo, mãos fechadas, passos rijos, ordenou abafado, como cão ofendido:
– Por hoje, chega! Vamos embora, Ornélias!
E a levou pelos braços. Coração aos pulos, rubor de brasa à testa, Salíndeo se levantou, quis dizer alguma coisa. O povo recuou.
– Esqueça ela! – afrontou-o, já na porta do salão. – Não há futuro, senão sangue.
E se foram. Salíndeo estava branco como cera. Devia ir atrás e rasgar os três com a faca que estava guardada na boldrana da montaria? Era o que o povo ali esperava. Levar aquela ofensa para o resto da vida? Mas o sanfoneiro, o violeiro e o pandeirista começaram outro arrasta-pé e logo todos dançavam animados. Quem se importava com as mágoas dele? O que lhe restava na noite? Beber, afogar as mágoas. Foi o que fez.
– Eles estão de volta, Salíndeo! – avisaram. – Vieram pegar você! Fuja!
De repente, os três embarafustaram no salão e a música se calou. E houve, então, o deus-nos-acuda. Os três irmãos voaram em cima dele. Houve socos, bofetadas, pernadas, e o povo se dividiu, igualando as forças. Mulheres debandaram. No salão, os brigões se enfrentavam como cães enraivecidos. Até que alguém começou a disparar tiros para o alto e os brigões se acalmaram, com medo. Os três irmãos saíram quietos, descontentes com a peleia. Salíndeo sangrava no rosto e havia perdido dois dentes. Alguns queriam continuar o baile, mas o sanfoneiro havia fugido.
Uma semana depois, quando as feridas já haviam cicatrizadas, Santônio Eurides e seus três filhos apearam no terreiro da fazenda dos Gonçalves. A vizinhança e a peonada estavam assustados. A visita não podia acabar bem. O velho Santônio, sorridente, apeou, tirou o chapéu de feltro, cumprimentou pai e filho. Não temessem, queriam colocar fim na discórdia maldita que durava mais de cinquenta anos. O moço Salíndeo era homem bom, muito corajoso, não se escondia por nada. Vinham, então, tratar do casamento. A Ornélias estava quase morrendo de tristeza, fizera greve de fome, estava disposta a sacrificar-se por seu amado. Já haviam, se aceito o pedido de casamento, convidado o padre Deuteronômio para a sagrada união. Nada melhor do que uma chuva de arroz nas serras, naquela capela escondida na montanha, para selar tão grande amor…
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