? “Cinco minicontos da pandemia” (Marinaldo de Silva e Silva)
Cinco minicontos da epidemia
ABRAÇADEIRA
Minha tia tá bem mudada. Ela que não encostava em ninguém virou uma abraçadeira e fez até um grupo no Facebook. Eu entrei lá. A primeira coisa que li foi: O ABRAÇO É A FITA QUE ENVOLVE O PRESENTE. Ou seja, agora ela também virou poeta. Chega em casa com dois braços enormes e me atropela de carinho. Diz que vai me abraçar feito uma Jiboia Carinhosa. Escutei ela falando pra mãe que depois da Pandemia de 2020 ela sentiu necessidade de mudar o mundo. Será que o mundo começa a mudar pelo abraço? Decidi fazer um teste. Fui com tudo pra cima de um velhinho do prédio e taquei uma jiboia carinhosa nele. Pensa como ele ficou cheio de estrelas! Acho que vou escrever para não esquecer que vou crescer para ser uma abraçadeira igual minha tia. Acho que vou repor estrelas!
ABRAÇO DE TV
O pai se chamava João, a mãe Maria e o filho que se chamava Neto, tinha uma dessas síndromes com nome de gente importante. Numa noite foram surpreendidos por um ladrão. Depois da Pandemia quase tudo tinha voltado ao normal. Coisas antigas como pobres e assaltos continuaram no curso. Com a TV embaixo do braço o ladrão foi surpreendido pelo menino. “Na hora do abraço o corpo deixa de ser corpo e vira laço”, repetia o menino o poema do pai. E completou “Quando eu crescer eu quero se igual a você”, abraçado às pernas do ladrão. Foram meses ouvindo na TV que o mundo esperava o momento em que todos pudessem voltar a se abraçar. E pela manhã, com a TV e o menino na sala, João e Maria abraçaram o filho e nunca descobriram que na casa deles, naquela noite, tinha entrado um ladrão.
A MENINA MASCARADA
Muita coisa mudou depois daquele tempo em que vivíamos afastados. O Peio agora estuda comigo pelo computador e a gente nem sente mais tanta falta dos jogos. Salvei algumas frases que as pessoas postavam falando em valorizar as coisas mais simples. Virei meio investigadora, e aos 12 anos, é uma tarefa bem difícil, porque é bem complicado esse negócio de afeto. Quando eu crescer quero ser alguém que fale o tempo todo dessa preocupação com o abraço. Marquei aqui, frase da minha mãe: Na hora do abraço o corpo deixa de ser corpo e vira laço. Serei uma protetora das promessas para que não sejam esquecidas. Dia desses nos reunimos, vi gente bicuda pelos cantos. Não deu outra, coloquei a minha máscara e apareci na sala. Na mesma hora todos entenderam o que tinham prometido.
A POMBA DA JANELA
Tem sido diferente ir à missa. Confesso que não gostava, era tudo meio repetição e perguntas. A minha mãe fez uma promessa, nos tempos da pandemia, que ocuparia mais o seu espírito em comunhão com gente desconhecida. Eu achei bonito mas confesso que me distraía com a fumacinha do incenso. Mas naquele domingo reparei nos bancos, pareciam alegres com o peso alheio que os deixavam leves. Na hora do canto eu olhei pra cima. As janelas da igreja tinham desenhos coloridos. Tinha uma pombinha branca que foi aos poucos se apagando porque a luz do sol foi indo para o outro lado da terra. No fim do encontro minha mãe estava feito a pomba quando tinha luz. Foi como se o brilho tivesse entrado dentro dela. No meio da multidão minha mãe virou prece e resposta. Estar juntos é divino.
CAMPANHA
Quando crescer quero fazer igual o meu pai fez quando recebemos a notícia de que o mundo voltaria ao normal depois do Corona Vírus. Naquele dia ele pegou todas as pessoas da casa e pediu um abraço gigante. Um desses abraços que fazem do corpo um laço quando um se entrelaça no outro. Quando crescer tomarei mais cuidado, olhar mais para o lado, me preocupar com o infinito, vou achar bonito o ajuntamento de gente que se preocupa com o aflito, vou escrever poesia como antigamente, e olhar pra frente sem esquecer do passado. Quando crescer mostrarei que o carinho não é invisível, e vou propagar que teve um tempo em que vivemos isolados para que não fiquemos mais ilhados. Quando eu crescer quero ser esperto, ser presidente e fundar o Ministério do Afeto.
Marinaldo