Covid na balada (David)
- COVID NA BALADA
DAVID GONÇALVES
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O jovem não se aguenta. Está cansado de ficar em casa. Vai na balada clandestina. Bebe, dança, fode, briga, se exaure. Que se dane o vírus! Vodca na goela, cachaça na goela, que vírus aguenta tamanho torpedo?
Chega em casa, daquele jeito! Exausto, dormindo em pé igual vaca, cheiro de sexo nas entranhas. Entra escondido, como ladrão. Não quer que os pais recriminem. Está sedento, a garganta seca.
Vai na geladeira bem louco e dá aquele gole bem servido e cheio de saliva no gargalo da garrafa de água. Pra que copo? No gargalo mesmo: gluggluggluuuggg. Agora, depois da noite abençoada, sente fome de leão. A mãe guardou a comidinha em cima do fogão.
Come e joga o prato na pia, toma um banho, vai dormir. Está exausto, mas satisfeito. Oh, noite abençoada. Que o mundo desabe! Este vírus não existe, é falácia, só abate os fracos.
De manhã, mãe e pai acordam, pegam na maçaneta, na torneira, lavam os pratos e talheres, enchem a botija de água, e tomam água meia hora depois. O filho, na hora do almoço, receberá uma reprimenda: sempre abastecer a botija de água. Não acorde o menino, deve tá muito cansado. Pobrezinho, foi se divertir um pouco. Arre, que ninguém aguenta ficar preso em casa… Mãezinha sempre mãe.
Usam o mesmo banheiro. Usam os mesmos talheres, as mesmas toalhas.
Todo mundo está cansado de fica em casa. A despensa quase vazia. A vizinha vem pedir um pacote de feijão. Chi, dona Francisca, também to com a despensa esvaziando. Não é má vontade, não. Acabou a ajuda do governo. O dono da mercearia não vende mais fiado, diz que tem dívidas com os fornecedores.
Dias depois, logo o pai ou a mãe começam a tossir, têm diarreia, febre alta, passam mal. O filho vem no Facebook pedir oração. Os pais estão na fila do hospital. Não tem leitos, estão febris, deliram. Precisam de leitos e tratamento urgente. Mas não há vagas. O filho pede orações. Nem se lembra da balada. Tava tão gostoso, tão divino, tão maneiro…
A fila dos pacientes para conseguir uma vaga no hospital espicha, sucuri espreitando, se movendo imperceptível.
Os filhos e parentes oram pra que abra uma vaga. Mas, pra isso, uns têm que morrer. Que morram, então. Precisam salvar os pais, os tios, os padrinhos, os irmãos. Oram pra que hajam vagas. Aqueles que estão com a mulher da foice no quarto estatelem os olhos mortiços. Primeiro os meus, depois os seus. Oram pra abrir vagas rapidamente. Os que estão no bico do urubu.
Mas a fila anda devagar. Os médicos lutam para salvar, enfermeiras correm exaustas pelos corredores, enfermarias e quartos. Alguém grita no corredor: O paciente 51 está morrendo! Médicos e enfermeiras se atropelam. É tarde. Acabou a agonia… lá está o corpo inerte, suado, ainda quente.
Agora, limpeza do quarto. Onde colocar o morto? Colocam num carrinho-maca e saem, velozes, empurrando, e despejam no container frigorífico, num saco de plástico preto, em cima de outros corpos geladinhos e trancam o container, até que as funerárias providenciem o enterro solitário.
Abriu uma vaga! – gritam os parentes, esperançosos. Mas a fila de espera dos agonizantes parece não ter fim. Para a fila andar, é preciso que morra alguém, mais e mais.
Os pais do jovem que foi na balada não aguentam; agonizam e morrem. Na fila à espera de um leito.
Nas redes sociais, o jovem está inconsolado, abatido. Faz postagens, enlutado:
“Meu herói, minha rainha, mais uma estrela no céu.”
Um enterro rápido e sem dignidade. A Prefeitura custeou o caixão barato. Sem rezas. Covas rasas. O jovem se sente nocauteado. Geme, grita: este Governo filho da puta que não cuida dos pobres! Governo genocida.
Fatalidade , se convence o jovem.
Três meses depois, ele volta às baladas. Os PIS pertencem a um passado distante. Fazer o quê? Tocar a vida, seguir em frente.