Desde que eu existo (David)

DESDE QUE EU EXISTO

David Gonçalves

 

Escorre saliva da boca murcha de minha mãe. A boca parece uma teia de aranha. Boca murcha e torta, o pescoço todo enrugado. Pescoço curto e grosso, sustentando a cabeça de cabelos brancos e ralos. Um dia, ela foi bonita. Tinha uma vasta cabeleira preta. Antes de eu existir. Quando vim ao mundo, ela já tinha um punhado de filhos.  Já era velha. Agora, resmunga, não consegue falar. A teia de aranha se mexe, solta saliva.

Desde que eu existo, ela foi uma fábrica de bebês. Vagina produtiva. Você sabia, me disse uma vez, que os homens escolhiam as mulheres pelo tamanho dos quadris? Quadris pequenos, estreitos, eram figueiras secas. Homens vangloriavam-se de suas mulheres produtivas. Ai, gemi…

Um acesso de tosse sacode a cabeça de minha mãe. Tuf-tuf-tuufff. Novamente a saliva escoa da boca murcha.

Desde que eu existo, os seios dela são fole de sanfona, caídos e flácidos. Toda cria ali se amamentou, sugou, puxou, sacudiu, mordiscou. Às vezes, até filhos de vizinhos. Caídos pelo umbigo. Mesmo quando secos, cedia-os para aliviar a fome e a dor de sua prole. Ai, gemi…

Ela quer falar. Murmura. Esbraveja, a boca de teia de aranha abre e fecha. Não sai nenhuma palavra do túnel da garganta. A morte, a indesejada, espreita-a e cerca por todos os lados. O que foi, mamãe? – pergunto, apreensivo. Quer água? Um pouco de canja?

Desde que eu existo, tem as pernas doentes, enoveladas de varizes negras. Por vezes, sangram. De tanto ficar de pé no roçado, no fogão, no tanque da bica d’água.

Desde que eu existo, mamãe tem a barriga elástica, mole, cinturão de banha caindo sobre o começo das pernas. De carregar peso: crianças, sacos de cereais, balaios de milho, trouxas de roupa até à bica d’água.

Essas mulheres de hoje, filho, não sabem o que é vida dura, me diz. Eu sei. Fiquei rendida duas vezes. Nem podia rir, tanto era a dor.

Desde que eu existo, mamãe tem homorroidas. Vivia se queixando. Ir para a casinha ou para a moita de bananeira era um horror, nada agradável. Por vezes, sangrava. Ainda sangra. Eu vi. Eu limpei. Eu passei pomada.

Pimenta é o diabo, diz. Mas o velho quer pimenta de todo jeito. Ah, como sofro. As vísceras ficam em fogo, queimando. Ai, gemi…

Desde que eu existo, tem as unhas pretas de tanto fuçar a terra, mãos calejadas, dedos rachados. Cabos de vassoura, de enxada, de foice e de ancinho fizeram de suas mãos uma carapaça de jabuti.

Eu nunca passei creme, nunca usei esmalte. Só sabão de soda, me diz. Se o velho me visse com as unhas pintadas era capaz de me matar, esbravejando. Sua puta, sua puta, sua puta!

Desde que eu existo, o pai batia nela. Antes de casar, bateu nela. Depois, bateu nela. Depois que morreu, ele vinha à noite e batia nela. Chorava escondido para que ninguém percebesse que era mãe infeliz.

Então, eu digo: minha mãezinha, estou aqui, não vou embora. Devolvo em dobro a gratidão que me deu.

A saliva volta a escorrer da boca murcha e torta.

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