Diálogo familiar (Hilton Görresen)
DIÁLOGO FAMILIAR
Hilton Görresen
Filho, me alcança aquele livro, o de capa azul.
Não acha que está faltando alguma coisa?
O quê? Está faltando folha? Você já leu o livro?
Não é isso. São só duas palavrinhas.
Se forem só duas palavrinhas, não tem problema. Deixa pra lá e me dá o livro.
São aquelas palavrinhas mágicas que se usa: por favor!
Ah! É isso. Quer dizer que você considera isso um favor, esticar um pouquinho o braço e pegar um livro na estante?
E não é?
Onde existe uma relação em que isso está catalogado como favor?
Não sei. Mas é costume…É coisa de etiqueta.
Etiqueta é uma espécie de formalidade. O que significa para você “fazer um favor”?
É prestar um serviço a alguém gratuitamente.
Não é assim tão gratuitamente. Quem é que lhe paga as roupas, os estudos, empresta o carro, financia os divertimentos?
Mas isso é obrigação de pai. É diferente.
Quer dizer que pegar um livrinho na estante é um serviço tão difícil, que isso tudo não paga? É necessário ainda solicitar por favor… Meu pai só olhava para nós, cruzava os braços e tínhamos que adivinhar o que ele queria.
Isso no tempo do Onça. O senhor mesmo que fala. Mas para que complicar? Pedir por favor torna as coisas mais fáceis.
Mais fáceis? Que tal chegar para meu chefe e pedir que me faça o favor de dar um aumento de 50 por cento? Será que ele me atende?
Aí não funciona. Ele é seu chefe. Não se pode pedir favores a ele.
E a quem eu devo pedir? A você que é meu filho? Está bem. Não vamos mais complicar as coisas. Por favor, me alcance o livro de capa azul.
Tá na mão! Viu como é fácil?
Muito obrigado.
Não há por que agradecer.
Não? Então pra que toda essa frescura?
PEQUENO TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 27.11.2021