Diálogo Possível (Simone Gehrke)

Diálogo Possível
Simone Gehrke

 

Pedro abriu a porta do céu com reverência e Veríssimo levou um susto.
– Como vim parar aqui, se deixei “minha fé na fatiota azul, de calças curtas, com que fiz minha primeira comunhão”?
– O céu também reserva espaço para aqueles que fizeram boas obras…
– Mesmo depois de eu afirmar que tinha “uma religião particular, uma espécie de panteísmo urbano (devoção por pastéis de carne e boas livrarias, e uma crença de que há, sim, um deus: o oboé, que, além de ser um instrumento maravilhoso, é o que afina todos os outros)”?
– Discutimos muito, até concluir que estávamos muito rigorosos com a sua classe. Cá entre nós (que ninguém nos ouça), isso estava deixando o ambiente um pouco sisudo.
– Mas não vem daqui o politicamente correto, que se tornou o novo normal onde eu morava?
– Já estamos em outra fase…
– Quer dizer que os humoristas foram absolvidos?
– Não é pra tanto… Mas os que deixaram de ser “inquilinos” na Terra nos últimos anos vieram direto pra cá.
– E como foram recebidos?
– Tão bem que resolvemos buscar outras almas que ainda pagavam por sua graça no andar de baixo.
– E onde estão eles?
Pedro apontou para uma porta no fundo de um corredor estreito e pouco iluminado. Não era uma sala VIP, como o anfitrião havia insinuado, mas estavam lá Ziraldo, Jô, Hebe, Juca, Luiz Gustavo…

 

Diálogos Impossíveis é o título de um livro (2012) de Veríssimo; ‘Ter ou não ter’ e ‘Inquilinos’ são crônicas do autor onde constam os trechos indicados com aspas.

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