Era o dia de procurar a cestinha… (Hilton)

ERA O DIA DE PROCURAR A CESTINHA…
Hilton Görresen
A época do Barroco – com seu detalhismo artístico, suas imagens de santos sofredores e anjos gordinhos –, deixou como herança cultural todo um estilo de vida. Era uma época na qual se cultuavam as aparências (culto levado hoje à exorbitância), os bons modos e as modas exclusivas. Época de contrastes, de Aleijadinhos, de reis luíses, de rapapés e de perucas esbranquiçadas de talco. Dentro dela, plasmou-se também o entrelaçamento dos mundos mundano e religioso, que se manifesta hoje nas festas religiosas e populares, nos carnavais, com o luxo das fantasias e os carros alegóricos, e nas procissões com imagens.
E por que iniciei meu texto com uma abertura tão “pernóstica”? Estamos nas festividades de Páscoa e isso me leva à imagem de uma pequena cidade, com igreja de características barrocas, imagens dramáticas, quadros entalhados nas paredes. Missas solenes, cerimoniosas, com ambiente exalando a incenso.
Eu estudava no colégio das freiras, o saudoso Stela Matutina. Minha infância decorria entre lições de caligrafia, silêncio e comportamento e a vizinhança com o sagrado. Havia uma parceria quase centenária entre a escola e a igreja. Nossa participação nas missas e nas procissões era obrigatória. Em época de Primeira Comunhão, os alunos saiam em fila do colégio, com a vela nas mãos, guiados por duas alunas maiores vestidas de anjinhos. Do colégio também eram recrutados os “coroinhas”, que conhecíamos por sacristãos.
Ainda hoje minhas lembranças exalam incenso e recolhimento. E todas elas sintetizam-se na semana de Páscoa. A procissão de Sexta-feira Santa expulsava de casa a cidade inteira. Até meu pai, caseiro e não muito adepto de religião, vestia seu terno de linho branco, colocava o chapéu de feltro e saia lampeiro às ruas. Eram duas procissões que, por caminhos diferentes, se encontravam na rua principal. Numa delas, seguia o corpo do Senhor, num palanque sustentado nos ombros pelos membros da associação mariana. Na outra, seguia a “Verônica” que, ao se encontrarem os dois séquitos, mostrava o lenço com o rosto sangrento de Jesus estampado, e cuja canção triste, diante do corpo morto, era o lamento dos cristãos.
No sábado de Aleluia, amanhecia um boneco de Judas no pátio da igreja. Debaixo de pauladas dos moleques, o mísero Judas se destripava, escorrendo seu sangue de palha, perdendo o pudor das vestes esfaceladas. E os moleques cantavam:
“É de biribiribiri, é de quáquáquá,
bota fogo na giranda,
deixo o nego vadiá”
Aposto que ninguém sabia o que queria dizer “giranda.
E finalmente chegava o dia mais esperado. No ambiente dramático e sinuoso do barroco, a Ressurreição era uma cena renascentista. Mas, para nós, crianças, era o dia de procurar a cestinha de chocolates.
FELIZ PÁSCOA!

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