Fome de amor

Mais um dia sem emprego, sem bico. Outra vez! Parecia que tinha dado certo, mas… não!  Mais um dia voltando pra casa sem um tostão furado. A fome roía-lhe as entranhas, eram oito da noite e ele ainda estava no magro café da manhã.

Quando entrou em casa, a esposa já dormia. O menino também, ao lado dela. Ela pegava o trem às 4 da manhã, mas antes levava a criança para deixar na casa da tia; e ia para o trabalho. Só ela estava sustentando a casa, com o escasso salário de auxiliar de produção. Tempos duros para todos, com tantas contas para pagar, de repente o desemprego dele…

Abriu a geladeira com esperança que algo houvesse para ele comer. Havia! Uma omelete: pelo tamanho, com dois ovos. Além disso, ali dentro só a garrafa de água. E a embalagem de leite, a um copo do fim. Ignorou-a. Nem ele, nem a esposa tocavam no leite, era só para o menino. Com a comida também. Comiam o que sobrava depois que serviam a criança. Mas até isso andava racionado agora. Possivelmente o menino também estava passando alguma fome, menos do que ele, mas…

Pegou o prato com a omelete, colocou-o sobre a mesa, apanhou os talheres. Enfim ia comer alguma coisa! Pegou a garrafa de água também e um copo. Ia comer bem devagar, tomando um monte de água junto, assim enganava o estômago. Quando empunhou o garfo e a faca, o menino entrou na cozinha.

– Acordado a esta hora, filho?

O garoto de 4 anos pulou-lhe no colo, passou-lhe os braços ao redor do pescoço, num abraço apertado. Esfregou a pequena testa na dele, era o seu jeito especial de beijar. Ficou agarrado ao pai.

– Sem sono, pai.

O hálito era inconfundível. Os olhinhos do menino na omelete confirmavam: fome! A criança acordara por causa da fome. Então o pai lhe falou:

– Olha, filhinho, o que o papai guardou pra você.

– Mas não é o seu jantar, pai?

– Não, eu já comi até demais. Sua mãe fez um monte de omelete, eu comi o que aguentei, guardei isso aqui pra você. Você quer?

O menino se desprendeu do pai e apanhou o garfo, passando a comer com sofreguidão, ajudado pelo dedinho da outra mão. Seu olhar agora era só felicidade.

O pai o olhava enternecido. Sua própria fome tinha passado. Seu olhar era também, nesse momento, só felicidade.

– Coma tudo, meu bem, não deixe nada, mamãe não ia gostar.

O garoto obedeceu contente. Limpou o prato. Perguntou ao pai se podia lamber o fundo. Claro que podia, ali só entre eles não era coisa feia. O menino lambeu o prato até não haver mais gosto de nada. Depois voltou para o colo do pai e passou-lhe os braços ao redor do pescoço de novo. Adormeceu em pouco tempo.

O pai levou-o para a caminha, ao lado da cama de casal, cuidando de não fazer barulho algum. Voltou à cozinha e bebeu vários copos de água, lavou prato e talheres. Amanhã haveria de arranjar o que comer. Voltou para o quarto. Por hoje estava contente, seu menino tinha fome, não podia dormir por causa dela, mas agora ressonava bonito na caminha dele. Olhou a criança longamente, estava feliz pelo menino, não sentia sua própria fome. Agora era dormir para evitar que ela voltasse a importuná-lo.

Olhou a esposa que dormia. Tão boa, tão jovem, tão sacrificada… Não dizia um aí, não o recriminava por nada, fazia o possível e o impossível pelo menino. Era uma dádiva de Deus, no meio de sua pobreza. Tomou-lhe a mão do braço descoberto e beijou-a com suavidade, para não acordá-la. Ficou um tempo com aquela mão macia na sua, depois adormeceu.

A esposa, acordada pelo beijo, continuou quietinha, fazendo que dormia. Quando constatou que o marido tinha adormecido, levantou e, pé ante pé, esgueirou-se até a cozinha. Sim, ele tinha comido toda a omelete e tinha já lavado o prato e os talheres.

Voltou a enfiar-se na cama, ainda tinha mais umas poucas horas para dormir. Antes apoiou-se no cotovelo e ficou contemplando o marido que dormia. Homem bom estava ali, tivera muita sorte no casamento. Não bebia, não jogava, bom pai, carinhoso, bem-humorado; era trabalhador como só, fazia bicos, o que arranjasse. Agora estava numa maré de azar, coitado, há muitos dias que não conseguia nada, nem bicos.

Ainda bem que ela tinha o seu emprego e podia almoçar na firma. Era do seu almoço que ela escamoteava uma parte num saco plástico e trazia para casa, para dar ao filho. Mas aquela noite ainda tinha três ovos em casa. Fez um para o menino, dois para deixar na geladeira para o marido. Não comeu nada, disse para o menino que estava sem fome, comia demais naquela firma.

Precisava dormir. Procurou com cuidado os lábios do marido adormecido para roçar-lhe um beijo agradecido. Sentiu o hálito inconfundível. Não, ele não havia comido a omelete! Olhou para a caminha e compreendeu: o safadinho devorou tudo. Seus olhos se encheram de lágrimas, ao contemplar aquele homem maravilhoso que Deus tinha colocado a seu lado na vida. Uma lágrima caiu, quente, no rosto dele, acordou-o. Ele abriu os olhos e fitou encantado aquele par de olhos tão bonitos, que o contemplavam com tanto amor.

Os olhos amados pararam de lacrimejar. Um enorme sorriso apareceu simultaneamente em cada uma das faces. Ficaram um longo tempo se olhando, encantados. Seis anos de casamento e de lutas, mas o amor deles continuava imenso, na verdade aumentava ainda mais nos momentos difíceis. Sorriram, riram, abraçaram-se, não precisavam dizer nada: estavam completamente felizes, absurdamente felizes.

Abraçaram-se outra vez. Reconheceram: sim, eram mais felizes do que quase todos os outros que agora dormiam de barriga cheia. Eles tinham fome, sim, e daí? Os outros tinham, quase todos, uma fome pior, que eles não tinham: FOME DE AMOR!  Adormeceram abraçados. Agradecidos. Amanhã seria outro dia.

Ao lado, o menino ressonava contente. Barriguinha cheia. Três ovos!

 

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