Histórias de guerra (Cristina)

Tão longe, tão distante… e ainda tão presente

Primeira Guerra Mundial influenciou o convívio e a educação familiar de descendentes de ex-combatentes em Joinville

 

Maria Cristina Dias

Especial para o Notícias do Dia

 

Você pode fugir da guerra, mudar para bem longe, recomeçar sua trajetória. Mas as experiências adquiridas em uma guerra nunca deixam que as viveu – e são transmitidas a gerações. Em Joinville, descendentes de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial lembram as histórias dos campos de batalha e da vida na época, contadas por seus pais e avós. Recordam o silêncio sobre os piores momentos, as cicatrizes no corpo, o valor à comida na mesa que permeou as suas infâncias. E, com seus relatos, mostram como o conflito marcou o convívio e a educação familiar, mesmo depois de encerrado há décadas.

A professora Carmen Fuchsberger passou a infância brincando despreocupada com os irmãos no sítio dos avós paternos Franz e Elisabeth Fuchsberger, em Rio Negrinho, e lembra do sorriso bonito e do jeito afável do velho Franz e das árvores de Natal enfeitadas com pequenos chocolates. Mas por trás da tranquilidade da área rural estava a história de duas famílias que viram de perto a guerra e sentiram seus efeitos.

Nascido em 1890 na cidade de Gunskirchen, na Áustria, Franz Fuchsberger lutou na Primeira Guerra Mundial, no exército austríaco. Quando ingressou no conflito, até quando permaneceu e em que frentes atuou, são informações que se perderam com o tempo e com o silêncio que impera nas famílias de ex-combatentes. Na guerra perdeu um dedo, foi ferido à bala e até carregou um projétil no corpo até o fim da vida – nunca retiraram. Provavelmente capturado em combate, conservava no braço direito uma tatuagem com um número de identificação – algo assustador para a menina Carmem, que anos depois sentava ao lado do avô para ajudar a debulhar o milho e observava a inscrição. “Ele usava camisa xadrez, com as mangas dobradas e a tatuagem chamava a atenção”, recorda.

Franz foi considerado morto durante a guerra e perdeu o contato com a família. Ao fim do conflito, ao voltar para casa, os pais já haviam morrido e os bens que deixaram foram repartidos entre os irmãos. Solteiro, sem recursos, ele decidiu imigrar. “Ele veio para o Brasil para se reerguer”, conta a neta. Chegou ao Brasil em 23 de outubro de 1922, se radicou em Rio Negrinho e logo começou a trabalhar como marceneiro na Companhia M. Zipperer, a Móveis Cimo, tradicional empresa moveleira do Planalto Norte Catarinense. Lá ficou por 22 anos, até 1944, atuando como “feitor de lustração”. Na cidade vizinha, São Bento do Sul, conheceu a jovem Elisabeth Hoffmann e em 1926 casou-se e começou uma nova família.

O casal tinha sua roça e plantava alimentos para o seu sustento – algo comum nas propriedades do interior, mas que para eles tinha um significado mais amplo. Depois de ter passado privações no conflito, Franz, como tantos outros ex-combatentes, dava valor especial à comida e não admitia desperdícios ou que alguém se recusasse a comer o que tinha à mesa. “Um dia a avó havia feito um feijão e eu recusei. Ele, da cabeceira, bateu na mesa e disse: ‘Aqui não existe ‘eu não quero’. Come-se o que tiver na mesa”, lembra Carmen, explicando que o avô evitava falar sobre a guerra. “Eu escutava do meu pai, mas dele, não”. A reação do avô ficou marcada na menina que, até hoje, mais de cinquenta anos depois, ainda fica angustiada quando tem que jogar comida fora.

A avó materna de Carmen, Erna Fissmer também sentiu de perto os efeitos da guerra.  Nascida em Berlim, era menina na época da Primeira Guerra. Um dia, estava em uma igreja, quando começou um bombardeio sobre a cidade. Apavoradas, as pessoas se esconderam debaixo dos bancos até o perigo passar. Ela trouxe consigo a lembrança destes momentos quando imigrou com a família para o Brasil, após a guerra, e, ao contrário de Franz, as dividia com a neta.

 

Duas guerras na família Semljanos

A vida da família Semljanos, ao longo do século 20, foi marcada pelas guerras. Ucraniano, Gregori Semljanos lutou nos dois conflitos mundiais e seu filho, Matias Semljanos participou na Segunda Guerra. No final dos anos 40, Matias conheceu a esposa, Iris Kampmann, que também era filha de um ex-combatente da Primeira Guerra, se criou no Brasil, mas retornou à Europa com os pais durante a Segunda Guerra. Gregori nunca veio ao Brasil, mas Matias e Iris decidiram imigrar no início dos anos 50, já casados e com uma filha. Na memória da família ficaram as privações sofridas pelos avós e pais – o frio, a fome, o medo. E um imenso valor a cada uma das conquistas da vida. “Quando a gente não queria comer algo, meu pai dizia: ‘eu já comi carne de gente’”, conta a terapeuta ocupacional Verônica Semljano, filha mais nova de Matias e Iris.

Verônica conta que o avô Gregori lutou pelo exército russo durante a Primeira Guerra desde seu início. Quando os russos, na época o império czarista, invadiram a Alemanha, Gregori conheceu a esposa Cristina. Aparentemente, ele ficou por lá, pois em 1919 nascia Matias, ainda na Alemanha. Quando o menino tinha três meses de idade, o casal voltou para a Ucrânia, a esta altura já integrante da União Soviética, sob o novo regime. Cristãos, eles sofreram perseguições por parte do novo regime e Gregori amargou dois anos preso na Sibéria, no período entre guerras. “Quem eles achavam que era contra o regime era punido. Eles eram cristãos e nunca negaram isso. Meu pai falava muito nisso”, conta a filha de Matias.

A escassez de comida era um drama na região. Verônica explica que hoje, quando lemos sobre a Grande Fome da Ucrânia, que no início dos anos 30 devastou o país, é difícil imaginar o que aquilo representava na realidade. “Comiam todos em uma só tigela, era o que tinha. Stalin odiava os ucranianos. Quem ele não matou de fome, mandou para a Sibéria”. Seu avô, agricultor e militar, sobreviveu à fome e à prisão na Sibéria e quando eclodiu a Segunda Guerra novamente foi convocado para os campos de batalha.

A vida era militarizada e as crianças tinham que crescer rapidamente. Ainda adolescente, Matias Semljanos se casou e passou a integrar o exército soviético, por onde começou a lutar na Segunda Guerra Mundial. Quando foi para o combate, acabou prisioneiro em um campo de concentração na Alemanha. “A gente acha que só tinha judeu, mas tinha de tudo. Ucranianos, poloneses… todos eram tratados da mesma forma”, conta. Matias, porém, de alguma forma conseguiu provar sua nacionalidade alemã e saiu da prisão. “Mas teve que entrar no exército alemão”, lembra a filha. De volta à frente de batalha, acabou sendo novamente capturado. Desta vez pelos franceses (mas fugiu) e por último pelos americanos. E lá ele conseguiu comer e aprender a profissão de mecânico de veículos pesados, que levou por toda a vida.

Entre combates, prisões e muita falta de informação, Matias perdeu contato com a primeira esposa e os dois filhos que deixou na Ucrânia. Muitos anos mais tarde, já no Brasil, descobriu que o filho pequeno havia morrido de fome e a mais velha, que sobreviveu graças a um punhado de ração recebida na escola, foi criada como órfã, já que a mãe também já tinha falecido.

Pelo lado materno, a história da família de Verônica também tem como pano de fundo as guerras. Seu avô materno, Hans Kampmann era alemão, estudava Medicina na Suíça e já namorava a sua avó, Frida. Quando começou a Primeira Guerra Mundial interrompeu os estudos (estava no quinto ano) e foi para o combate. Segundo a neta, mesmo sem ser formado, atuou na direção de um hospital nesse período. “Largou a faculdade por causa da guerra e não voltou. Depois se casou”, conta Verônica. Sua mãe, Iris, nasceu na Suíça e, com seis meses veio com os pais para o Brasil. Como tantos outros imigrantes no período, eles precisavam refazer a vida no pós-guerra. No Brasil, Hans foi professor de alemão em Joinville, Jaraguá e Corupá. Mal falava o português, não tinha tino para negócios, mas era bom professor – e encontrou no magistério a forma de ganhar a vida.

Quando Iris tinha 13 anos, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais, então, decidiram fazer o caminho de volta. Pegaram os filhos (com exceção de uma filha, que ficou aqui e se casou) e voltou para a Alemanha, onde se reintegrou ao exército. “Voltou e foi convocado como oficial médico. Chegou a ser diretor de um hospital nazista em um território ocupado da União Soviética”, conta a neta.

Iris estudou enfermagem e começou a atuar na profissão. Um dia, depois da guerra, precisou levar uma gestante de trem até a Bélgica, para a casa de uma família amiga. No caminho, o bebê nasceu e a jovem fez o parto. Quando chegou ao seu destino, conheceu Matias Semljanos – a casa era da irmã dele. Os dois se casaram e decidiram imigrar. A princípio, a ideia era ir para o Canadá, mas como Iris tinha uma irmã em Joinville, resolveram vir para o Brasil.

Matias faleceu em 2005. Da guerra, que marcou a sua vida mesmo antes de ter nascido, ele lembrava os horrores. “Falava de comer carne humana rotineiramente, de sentir muito frio, de ficar meses com a mesma roupa…. E de um ‘piolho’ que comia a pele e a carne. Ficava tudo assado, com feridas abertas por baixo das roupas”, lembra a filha. “Falava também da solidariedade. Ele, que só tinha um tiro no braço, em um hospital de campanha cuidava dos outros em situações piores”, acrescenta.

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