Histórias e lendas de São Francisco do Sul
Para se falar de nossas lendas, é bom dar umas pinceladas em nossa História. Há indícios de que o homem branco tenha aportado em São Francisco, logo após o descobrimento do Brasil. Os indícios se referem à expedição comandada pelo francês Binot Paulmier de Gonneville, que teria aqui aportado em 5 de janeiro de 1504. Há registros históricos de que, posteriormente, os espanhóis andaram visitando nossa ilha, podendo ser considerados nossos padrinhos, visto que o nome de São Francisco foi-nos dado por eles; se de Assis ou Xavier existe controvérsia. O abandono a que os portugueses relegaram a região Sul, fez com que os espanhóis fossem presença constante em nossa ilha. Até que, com a libertação de Portugal do Reino da Espanha, os portugueses, ou mais precisamente os bandeirantes, se preocuparam com o povoamento da região. Foi assim que Manoel Lourenço de Andrade, vindo com sua família e com amplos poderes do Marquês de Cascais, fundou a povoação, em 1658. Em 1665, São Francisco era elevado à condição de Paróquia, ocorrendo por esse tempo a morte de Lourenço de Andrade, sendo sepultado na igreja de Nossa Senhora da Graça.
Anos mais tarde, o cargo de capitão-mor de São Francisco foi assumido por Domingos Francisco Francisques, o Cabecinha, de lamentável memória, na qualidade de representante e lugar-tenente do Marquês de Cascais. A residência desse personagem ficava nas Laranjeiras, onde dizem que ainda hoje existem as ruínas de sua casa. Há muitas histórias que retratam a maldade desse personagem.
Segundo o historiador Carlos da Costa Pereira, havia na vila uma mulher de nome Ana Lamim, esposa de Manoel Velho, que pelo jeito possuía invejáveis atributos físicos. Pelo visto, a fogosa mulher não era de respeitar a honra do marido e se envolvia com outros homens, sem guardar fidelidade a nenhum deles. O irmão de Cabecinha, Manoel Francisco Francisques, e um seu parente de nome João Mor Vieira com ela se envolveram, e desse “triângulo amoroso” resultou um duelo entre eles, nenhum dos quais escapou com vida. Para evitar novas desavenças, o capitão-mor determinou que Ana Lamim e Manoel Velho selassem a paz conjugal e viessem a morar junto, de forma a evitar novas mortes na vila. Não contava Cabecinha, no entanto, com a disposição de Ana em continuar a ter a sua vida livre. Vendo frustrados seus intentos e tendo sua autoridade de capitão-mor arranhada, e ainda encolerizado pelo desfecho da briga entre seus dois parentes, sai ele à procura da mulher por toda a vila e arredores para fazer a sua justiça. Quando conseguiu localizá-la, matou-a a tiro de bacamarte, colocando fogo em suas vestes e deixando seu corpo a arder, noite adentro. Há outra versão, segundo a qual Cabecinha estaria perdidamente apaixonado por Ana Lamim, e como esta não correspondia aos seus afetos, resolveu assassiná-la daquela maneira.
Uma lenda famosa em São Chico lembra mais uma atrocidade cometida pelo Cabecinha. Segundo consta em documentos, tendo morrido um neto do capitão-mor, quis ele que fosse enterrado na capela-mor da matriz, com o que Frei Fernando (da ordem dos beneditinos), o vigário da igreja, não concordou. Por esse motivo, Cabecinha moveu contra o sacerdote uma terrível perseguição que fez com que o padre fugisse da vila para não mais voltar. Até aí é o que registra a História, mas diz a lenda que o capitão-mor colocou o frei em uma canoa, com uma pequena quantidade de água potável e uma ração de pão, soltando o infeliz sacerdote à sua própria sorte, fora da barra da ilha. Este, então, teria lançado a praga de que, enquanto houvesse em São Francisco um descendente de seu algoz, a cidade não conheceria o progresso. E hoje, diante de qualquer fracasso do crescimento da cidade, é invocada a “praga do padre”.
O fim da era de Cabecinha se deu quando o capitão-mor soube que o Ouvidor Rafael Pardinho havia programado uma inspeção à vila para apurar denúncias de desmandos e outras irregularidades na administração dos negócios: sabendo dos rigores do Ouvidor, o malvado fugiu, embrenhando-se nas matas, não deixando qualquer rastro, transformando assim em lenda o seu desaparecimento.
Outra lenda famosa é a que se refere ao Morro do Hospício. Esse morro é aquele cujo acesso se dá ao lado do atual restaurante do Hotel Zibamba. Segundo a lenda, as ruínas existentes no local são de uma igreja cuja construção por diversas vezes foi tentada, no topo do morro, mas quando a obra chegava ao teto a construção misteriosamente ruía. Por isso, o local era tido como mal-assombrado e se dizia que havia ali tesouros enterrados e que também existia uma rede de túneis subterrâneos que ligavam o local ao porto e à igreja, além de dizer-se que, por diversas vezes, ali fora avistada a figura de um padre. A verdade é que se tentou algumas vezes construir ali uma igreja, mas a falta de recursos acabou por impedir isso, e a obra, submetida à intempérie, acabava ruindo. Segundo Carlos da Costa Pereira, as ruínas eram de uma capela sob a invocação de São José, mandada construir por Isabel da Cunha em suas terras. Ficando ao abandono, a Ordem Terceira de São Francisco acabou por assumir a sua responsabilidade.
Como a restauração da igrejinha seria muito cara, a Ordem resolveu derrubá-la e no local construir outro templo, de maiores dimensões. Foram levantados apenas as paredes laterais, o arco do cruzeiro e a parede do fundo. Em fevereiro de 1859, quando estava quase terminada a parede da frente, a mesma partiu-se, por fragilidade da estrutura, bem como as do lado norte, tendo os pedreiros opinado que as paredes partidas deveriam ser demolidas e reconstruídas. A falta de recursos impediu o trabalho, e a construção parou onde estava e assim ficou por muitos anos, mas nunca por nenhum motivo sobrenatural. O termo “hospício” do nome do morro não se refere às atuais casas de loucos. Antigamente não existiam estabelecimentos hospitalares. Os enfermos eram recolhidos por caridade a abrigos, geralmente pequenas igrejas ou capelas. Esses locais eram chamados de hospício, da mesma raiz de hospitalidade, significando abrigo, asilo, etc. Supõe-se que era isso que a Ordem Terceira da Penitência de São Francisco, que depois construiu o Hospital de Caridade, pretendia estabelecer no alto do morro.
A respeito de navios, havia um que tinha uma estranha sina. O navio era o cargueiro “Itamaracá” (ou coisa parecida). Era o “Itamaracá” entrar no porto para que a chuva despencasse sobre a cidade. E tal era a extensão da crendice que, quando os soldados do Forte Marechal Luz, sede da Bateria de Artilharia de Costa, avistavam o navio entrando no porto, podiam suspender a ida para a cidade porque a chuva ia estragar o seu programa. Em compensação, mesmo que estivesse chovendo fortemente, se divisassem o “Itamaracá” saindo do porto, podiam programar a saída, na certeza de que o bom tempo se aproximava.
Mas a melhor das crendices, a mais simpática, é sem dúvida a que se refere à “Carioca”. “Carioca” é uma fonte de água que existe na chamada Rua da Fonte, ou Largo da Carioca, esquina com a Rua Marechal Floriano. Diz-nos Arnaldo S. Thiago que é tricentenária e forneceu água para todas as casas da região central da cidade, até que se instalasse o serviço de água tratada, no final do século 20. Carioca é a denominação indígena para as “bicas d’água” que abasteciam a antiga vila e os próprios índios carijós. Existiam cinco delas: Carioca, Sinhá Nica, dos Frades, Estrela e Itapoca. Hoje são conhecidas essa da qual falamos, a mais central, que foi recuperada em 1884 e apresenta antigos azulejos portugueses, e a fonte da Rua Marcílio Dias, em estilo colonial (recuperada recentemente). Durante o tempo em que a Carioca abastecia a cidade, muitas pessoas viviam do transporte de água para os lares de seus fregueses.
Diz a lenda que todo aquele que tomar água da Carioca vai voltar a São Francisco, mesmo que não tenha gostado da terra.
OS TIPOS POPULARES DE SÃO FRANCISCO DO SUL (década de 1950/60)
São Francisco, como qualquer localidade que se preze, teve os seus tipos populares, pobres figuras que eram por todos discriminadas. Levavam sua vidinha humilde e sacrificada, deixando a marca de sua existência na cidade. Mas quem se preocupava em conhecer suas histórias? Uma delas era a Bernardina, mais conhecida por Bernardina Boi. Tinha o rosto triste, de poucos amigos (e será que tinha algum amigo?), andava descalça, com uns andrajos no corpo. Sua voz se transformara em um rugido, há quanto tempo não a utilizava para conversar com alguém? Respondia com um urro ou mordia os dedos de raiva quando lhe gritavam: Bernardina, olha o boi! Mantinha a subsistência carregando baldes de água da fonte da Carioca para algumas famílias. A Carioca era sua casa, ali fazia sua higiene, tomava seu banho.
O Nório era um negro magro, de altura média, mancava um pouco de uma perna e tinha um grande calombo no alto da cabeça. Era chamado pelos moleques de “Duas Cabeças”. Aí o Nório mostrava aos desabusados, com gestos obscenos, onde estava a cabeça sobressalente. Quando havia pedras por perto, era tratar de correr, porque o Nório as atirava nos desafetos. Morava na R. Comandante Cabo, numa casa demolida, o interior tomado pelo mato. A casa, por certo, pertencera à sua família, em tempos mais felizes.
O Otávio Grilo, conhecido também como “Guilo da Bilonha”, era meio maluquinho, magro e seco como um verdadeiro grilo. Conta-se que estava um dia desconsolado, sentado em uma mureta, quando um religioso de visita à cidade lhe perguntou se podia informar o caminho da igreja. O Grilo indicou-lhe como lá chegar. O religioso, vendo-o naquele estado, e notando sua deficiência mental, falou: Obrigado moço! Gostaria de lhe ensinar o caminho do céu. O Grilo então lhe respondeu, em seu falar estropiado: Hmmm! Se o sinhô nem sabe o caminho da igreja cumé que vai me ensiná o caminho do céu?
O Caveira, de cabeça fraca, era alto, tinha um bigodinho fino e apresentava uma magreza que justificava o apelido. Andava sempre com um paletozinho apertado. Era o único que achava divertido ser chamado pelo apelido. O Caveira tinha a fama de perseguir as moças. Outro que perambulava pelas ruas, atormentado pelos meninos, era o Osvaldo Gambá, mulato que vivia em “estado etílico”. Quando pedia alguns trocados a alguém, já ia dizendo: não vou mentir. É pra bebida! Em outros tempos, antes de se tornar uma figura popular, o Osvaldo fazia pequenos serviços nas casas.
Outro tipo conhecido era o Chico Caminhão, que também transportava água da Carioca. Era um dos últimos espécimes de uma ocupação tradicional, que caracterizava nossa cidade: a de cangueiro (pessoa que carregava baldes de água pendurados em uma canga atravessada em seus ombros). Havia uma musiquinha a seu respeito, que dizia numa das estrofes:
Uma canga, um balde na mão
Lá vem o Chico Caminhão
O “Amanhã tô rico” era um maluco que repetia tal frase, certamente achando que iria receber uma grande herança. Quando passava, a moçada gritava: Amanhã tô rico! Ele apenas sorria. Também era conhecido o Quidoca, negro forte que participara da guerra. Como muitos ex-combatentes, voltara da Itália com sequelas. Tinha crises que o deixavam alucinado, e andava pelas ruas agitado, como se estivesse lutando com os alemães. Com o Quidoca ninguém mexia, tinha cada braço…
Outra figura tradicional em São Chico era o Leolino, velho magrinho que se dedicava a consertar guarda-chuvas. Casado, o Leolino tinha dois filhos. Dizem alguns que em seu velório, enterro de pobre, havia rolado muita cachaça. Em dado momento, os tristes e compungidos amigos ali presentes resolveram retirar o Leolino do caixão e o colocaram debruçado na janela. Ao amanhecer, as pessoas que por ali passavam, certamente desconhecedoras de seu passamento, o saudavam: Bom dia, Leolino! Outras se ofendiam com a atitude do morto, que nem sequer as olhava: Então, Leolino, está ficando rico, nem fala mais com os pobres!
Outro dos tipos, esse mais antigo, era um preto, morador lá do fundo do Rocio Grande, que, juntamente com a família, se dedicava a colher determinado tipo de capim, que servia para fazer colchões. Saiam pela cidade com os sacos de capim às costas a oferecer o produto, que era o seu ganha-pão; evidentemente, uma vida miserável era a que levavam, e procuravam amenizá-la dando-se ao vício do álcool. Chegavam bem e voltavam embriagados para casa, essa era a rotina. Diziam que ele e a família tinham por hábito também roubar galinhas para complementar a sua renda. E não poucas vezes foi recolhido à Cadeia Pública sob tal acusação. A coisa virou gozação, principalmente por parte da molecada. Quando passavam nosso personagem e a família, lá vinha o coro das crianças: piu-piiiiu! Mas o preto não se aborrecia, dava uma estridente gargalhada e seguia alegre, fazendo um grande barulho com a sua cantoria.
Outro pobre coitado ganhava a vida puxando serragem das serrarias da cidade para as lavadeiras, que a usavam como lenha para ferver as roupas brancas e até para cozinhar. Tinha um carrinho de mão. Só que seu carro era todo enfeitado e ele o conduzia como se tivesse em suas mãos um grande trem, com o apito do “chefe-de-trem” e tudo o mais, até o roteiro era dado antes da partida: “Atenção, senhores passageiros que se destinam a Araquari, Joinville, Guaramirim, Jaraguá do Sul, Corupá… o trem passageiro partirá dentro de 30 segundos, queiram tomar seus lugares. Priuiiiiiiii!”
Por último, havia o Edgar, conhecido por seu hábito de “afanar” galináceos. O Edgar fazia ponto no Mercado Público, vendia sacos acho que de serragem. Foi um precursor dos brindes-surpresa, adotados hoje pelos comerciantes: alguns dos sacos de serragem vinham “premiados” com uma galinha dentro.
(Textos adaptados do livro “São Chico Velho de Guerra – memórias de um francisquense” – Hilton Gorresen)