Ikkyu (Guerreiro)

IKKYU                                          

Walter Guerreiro

Sentiu a brisa agradável nas hastes do capim florido como há muitas primaveras atrás, e seu passo agora era tão decidido quanto fora naquela época que se perdia com as brumas das montanhas de Myojingatake. O caminho trilhado no fundo do vale corria paralelo ao rio Hayakawa aqui buliçoso, pequenos saltos de água entre as pedras rasas e redondas, o azul límpido refletindo o céu sem nuvens, o verde claro das encostas recobrindo tudo, demarcando a trilha que levava a Kiga. Aliás, Kiga ficara para trás, às suas costas, com as casas da aldeia agrupadas nas faldas do Myojingtake. Aqui e ali ouvia os pássaros trinando entre o capim alto, um esvoaçar preguiçoso quando as sandálias de palha ficavam demasiado próximas, nada perturbando o sossego daquele dia que começava. Sua mente divagava não se fixando em nada, apenas absorvendo o grande vazio, buscando engolir tudo como uma grande esponja, sem esforço, apenas deixando fluir. Fora treinado, e através dos anos adquirira domínio das emoções, embora não pudesse ainda deixar de ouvir o som distante de uma flauta, um trecho melancólico de alguém, que como ele buscava flutuar neste mundo. O sol rebrilhava além dos ramos de uma cerejeira e ele não pode deixar de se lembrar daqueles versos sobre o sol, o perfume das flores e o caminho da montanha, mas nem os maiores mestres estavam imunes a isso, e ele era um grão de areia que as sandálias levantavam a cada passada. Mais íngreme se tornava o caminho acompanhando as rochas soltas da base da montanha, o verde claro das folhas novas no vale substituído por uma folhagem escura, esparsa aqui e ali entre os rochedos. A trilha conduzia à passagem de Mannen Bashi, uma ponte estreita sobre as águas do Hayakawa um poço abaixo da cascata, envolta pelo vapor subindo ao sol. Parou por um instante contemplando aquela água, a impetuosidade represada entre as rochas, o som da força levando de roldão tudo pela frente, as gotas se espalhando em toda volta. Gotas infinitas em leque, gotas cada uma um pequeno mundo, o mundo como orvalho efêmero, e quem sabe em cada gota que fantasias gigantescas. Cada gota um instante de sua vida turbulenta como aquele rio, uma pequena esfera fechada em si mesma, absorvendo luz, refletindo um brilho de sol em miniatura, e tão frágil, logo se tornando vapor ou miríade de pequenas gotas, um momento fugaz do rio. Abaixou a cabeça por um instante ajeitando o chapéu cônico de junco ao queixo e retomou a caminhada atravessando a ponte. O caminho agora se afastava do curso do rio, as pedras maiores deslocadas demarcavam o limite da senda que levava ao topo da montanha, e dali encosta abaixo para o outro vale. Não havia porque acelerar o passo, e, no entanto Ghi-do San chamado Tsu Ko Nin, ansiava no íntimo em voltar àquele bosque, onde aprendera a entender o Ki¹.  Aprendera a respeitar a montanha, a enxergá-la como a via agora, a luz do sol delineando a encosta e as brumas encobrindo a maior parte, a grandiosidade latente, majestosa, energética, austera, insinuante, observando e sendo observada, pendurada sobre as águas do Hayakawa, senhora das colinas e dos vales, aceitando despreocupadamente a reverência dos homens. Aprendera a entender o estado de alma de cada coisa e de cada estação, o início e o fim, a manhã e a noite, as nuvens e as brumas, o levantar do sol sobre as montanhas na primavera, a névoa subindo do vale, as refegas do vento espalhando as chuvas primaveris, as rochas nuas expostas nos altos cumes, ao mesmo tempo esqueletos da terra e do céu, e os rochedos arredondados na base da montanha, recobertos de musgos e de líquens, a verdadeira estrutura subjacente à musculatura da montanha, intercalados aqui e ali por fios de água, juntando-se mais além – água que é o sangue do céu e da terra, circulando generosa para formar o grande caudal no vale. Arbustos agora se sucediam os ramos se entrecruzando à margem do caminho e acentuando o contraste com o solo acinzentado, quase arenoso, uma mistura áspera de argila e areia, detritos de rochas desgastadas pelo tempo, ligeiramente úmido pelo orvalho da manhã, pequenos círculos marcando as gotas caídas dos ramos e folhas, folhas de todos os matizes, nenhuma maior que uma noz, redondas, triangulares, em maços e isoladas, formando tapete que absorvia o peso das passadas, as sandálias de palha se adaptando contra o solo e este logo voltando à posição como se impulsionado por uma mola, samambaias dispersas e raras folhas estreitas e longas explodindo, coroadas no centro por florzinhas de um amarelo vivo, notas dissonantes como o toque de uma biwa interpretando o Heiki Monogatari, cada toque um grito lançado no fragor do combate, límpido, áspero, destacando-se da cascata de sons dedilhados rapidamente, a massa profunda da dor e da emoção. Flor, minúscula flor de cinco pétalas, amarela como o sol, irradiante, pulsante, estrela solitária, uma e no entanto múltipla, presença possível na ausência.

De chofre… o mar, as vagas, subindo e descendo, a crista de cada onda num momento a linha tênue correndo, passando, e outra e outra, o verde profundo, uniforme e com mil nuances, oscilante, cambiante, volúvel como as nuvens que absorve, pontilhando de formas entrevistas ou quiçá imaginadas, e olhando atentamente, explodindo em branco, bolhas de espuma se formando, pontos de luz com todas as cores do arco-íris, pontos de brilho em staccato qual mare nostrum, mar mãe. Memória revolvida, devolvida, memória fugaz de um tempo que já não importa, lembranças entrecruzadas no atalho. Chegara aos primeiros bambus, o chão recoberto de folhas secas, tapete contínuo amarelo-palha, amarelo-cinzento, gigantesco tatami.  Descalçou as sandálias pisando as folhas caídas, os pés pressionando a grossa camada depositada estação após estação seca e quente, suave como papel, estalando ligeiramente ao ritmo das passadas. Embrenhava-se entre os bambus gigantes, as copas muitas braças acima, preguiçosamente movendo-se com o vento, do verde escuro das folhas maduras ao verde claro quase transparente nas novas do topo, massa de verde balouçante, o sol atravessando as hastes e provocando manchas de luz se refletindo no amarelo dos bambus, fundindo-se com eles, perdendo a individualidade, rangendo, vibrando, vivendo. Ao nível do olhar a massa escura dos bambus, nós separando os gomos, o amarelo salpicado de verde, as listras longas unindo céu e terra. Aqui e ali surgindo dos nós, pequenas hastes leves, delicadas, resistentes, abrindo-se em folhas longas, estreitas como pontas de lanças defendendo o bambu-cidadela, e no entanto, delicadas, livres como o toque do pincel ao escrever as letras IKKYU², “um descanso”, a brevidade do traço correspondendo à brevidade da vida.

Apanhou uma das folhas secas e a sentiu na mão, lisa e o mesmo tempo com pequenas saliências, fibras correndo de fora a fora, da base à ponta um toque de seda e no contra fio cortante, o perigo latente. Pensou, tal como a folha é o bambu, leve, flexível, cedendo à mais leve brisa e por outro lado duro, altaneiro, desafiando a tudo e a todos, impenetrável. Massa insondável, num instante estática, imóvel a seus olhos, o claro-escuro, dia-noite confundindo as formas, o vão revelando-se desvão, a tensão da descoberta aliada à tranqüilidade da certeza, tudo fluindo lentamente, seu olhar buscando nos espaços livres a luz que atravessava o bosque.

De repente algo mudara algo que não se encaixava, o que num átimo atrás fora escuro tornara-se claro, ondulando contra o movimento dos bambus. Os gomos não se encaixavam mais, a superfície lisa e brilhante continuava lisa e brilhante, mas diferente, sedosa aveludada e ondulante. E ele então viu o tigre.

Deslizando entre os bambus, enorme, majestoso, a pele fremindo os músculos, as listras alternando-se com os bambus e as patas poderosas pisando suavemente as palhas. A pele solta da barriga recoberta de longos pelos brancos num vai e vem balouçante como que acompanhando o vento, roçando o chão, a cauda despreocupada, contudo percebendo-se no todo a estrutura formidável subjacente, a ossatura poderosa, o cavername do leviatã. Os grandes bigodes brancos estremeciam aspirando todos os odores da mata, antenas sensíveis guiando Dédalo no labirinto.

Súbito estacou voltando a cabeça em sua direção, as pequenas orelhas redondas atentas, os olhos amarelo-dourados fixos, repuxados num esgar de maldade, o tempo congelando entre os dois.

Bambus, tigre e homem estavam imóveis.

E então o encantamento se desfez o tigre olhando fixamente nos olhos do homem, a mirada ignorando a muralha de bambus, lentamente se virou e o escuro das listras fundiu-se no escuro da mata.

Tsu Ko Nin, o caminhante, imóvel sentiu a brisa atravessando as frestas dos bambus e o kimono, e compôs um hai-ku:

Bambus ao vento

o tigre  deslizando,

um só.

 

Notas:

¹ Ki – Substância fundamental constituinte de tudo aquilo que existe no mundo físico,seres vivos e inanimados,sólidos e gasosos,luz e calor,considerado energia primordial e princípio passivo existente desde o início dos tempos.

² Ikkyu – [… Tem de sentir o que é a realidade, a verdadeira natureza das coisas no kensho (o despertar da consciência no zen budismo) naquele breve instante do Ikkyu se unir ao Todo para alcançar o satori ( estado duradouro na iluminação espiritual)…].

 

 

 

 

COMPARTILHE: