João Ramalho no paraíso

1 – VAI, JOÃO, VAI CONQUISTAR O BRASIL!

 

VOUZELA, Portugal, 1512

 

– Não vais, não vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não vais! Eu não t’o permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se fala mais nisso!

Catarina de Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.

O marido, o velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conheciam-se todos. João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio – seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos arredores todos de Vouzela.

Já temendo por isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora, essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o da própria futura sogra, de respeitável cara feia também, não era exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que fosse com Catarina Fernandes.

Mas acabou tendo que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não havia cristo que pudesse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:

– Ai, que me morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!

E redobrava os gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina, acabava sempre ficando na dúvida: e se dessa vez fosse verdade? E se a mulher morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.

Quando a pressão do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena, sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida.   A vida de casado não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A esposa era em tudo uma cópia de Catarina Balbode. Sempre de cara fechada, sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos. E mandona! Mandona como a Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu burro!

Na cama era uma verdadeira negação. Não no sentido que se negasse. Mas não participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por esse motivo:

– Me sais um frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação! Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer. Ai, as pontadas!

Num dia de sábado, em que as duas mulheres foram cedo para a missa das seis, pai e filho tiveram uma conversa decisiva.

– Meu pai, dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos? Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi: vou-me embora de Vouzela.

– Ah, pois que estás certo, meu filho. Teu pai te compreende e te diz: vai-te logo enquanto é tempo. Se ficares tempo demais, como eu fiquei, acabas te acostumando e nunca mais consegues te libertar.

– Ora, meu pai, cá me vejo eu surpreso! Não pensei que me apoiasses nisso. Achei que considerarias loucura minha.

– Loucura será se, podendo partir, ficares. Aproveita que és jovem e forte, já vais fazer dezenove anos e já tens essa barba ramalhuda, toda crespa e esparramada.  Ela te faz parecer mais velho do que és, ajuda a impor respeito à tua figura.

– Isso é verdade, meu pai. Há uns gajos, lá na Quinta, que, para diferenciar-me de meu pai, porque somos os dois João Maldonado, estão a chamar-me de João Ramalhudo. E uma cachopinha, filha do tanoeiro, em quem ando dando uns apertos lá no meio das oliveiras, chama-me agora Joãozinho Ramalho.

– Ora, ora, isso é divertido, mas até que te vai bem. João Ramalhudo. Ou João Ramalho, fica até melhor. Um nome novo para uma vida nova! Não está mal, não está mal. Mas dize-me tu, como e quando pretendes partir?

– Espero meu aniversário de dezenove anos, no mês que vem. E aí vou-me a pretexto de que consegui um grande emprego em Lisboa. Meu amigo Pedro Farias irá apresentar uma carta de um tio seu, que vive na capital, propondo-nos trabalho com uma paga muito elevada. É mentira, é claro. Mas a carta é verdadeira, já a recebemos pelo mensageiro. De qualquer forma, é na casa desse tio de Pedro Farias que iremos ficar nos primeiros tempos. Até que eu possa embarcar como grumete num navio que parta para as novas terras que Pedro Álvares Cabral descobriu para nós, as terras onde há o pau vermelho que vale como ouro para os que tingem tecidos, o pau-brasil.

– Ah, com que então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?

– Ah, meu pai, andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e lustroso, posso aguentar um pouco de fome, a causa é nobre.

– Não, não! Não criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina, tua mãe, também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro, que guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.

– Meu pai, quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.

– És um bom menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada!

Pois agora Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Como se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?

– Mas meu pai nunca que me disse para eu não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.

– Ora, não disse porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu ramalhudo de meia-tigela.  E olha que, se tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:

– Até nunca mais, suas rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes!

Minutos depois estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já tinha trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o tivessem percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi rápida e cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um longo e apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com lágrimas fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:

– Vai, meu filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!

No minuto final, ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:

– Vai-te, João Ramalho, vai conquistar o Brasil!

E, dando as costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de

trás da bodega, onde podia chorar sem ser percebido pelos outros homens.

João Maldonado filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima, surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois consigo mesma:

– Adeus, João Ramalho, vai com Deus.

Era ainda o ano da graça de 1512.

 

 

2 – Ratinhas!

 

Muito, muitíssimo mais fácil do que imaginara! Como fora fácil engajar-se como grumete numa caravela que fazia parte de um grupo a partir para o Brasil. No fim, não havia passado nem um mês na boa hospitalidade de tio Farias e já estava cortando o Oceano Atlântico no rumo sudoeste.

Se fácil havia sido engajar-se, difícil foi habituar-se à nova profissão de homem do mar. Isso pela óbvia razão de que o mar nunca ficava quieto! Aquele balouçar ritmado dava-lhe nas entranhas e João quase que as vomitava inteiras nos primeiros dias. Aprender a escalar os mastros fora-lhe agradável, até o dia em que o capitão mandou-o encarapitar-se no alto do cesto da gávea: “Anda, avia-te, hoje tu vais para o caralho!”

Visto e sentido ali do alto do caralho, o balouçar das águas era muito mais intenso e o efeito sobre suas entranhas o pior possível. E havia a cruel disposição do imediato de castigá-lo com 20 bastonadas caso vomitasse lá de cima sobre os marinheiros embaixo. O medo das bastonadas fazia-o vomitar no balde que havia levado para lá escondido.

Mas acaba-se o homem acostumado com tudo, basta que se lhe dê tempo ou que a isso o obrigue o destino. João Ramalho teve tempo para acostumar-se e depois de duas semanas de embarcado já não tinha mais os mesmos enjoos colossais. Aos poucos foi-se tornando senhor da situação e deixou de ser motivo de chacota dos outros marinheiros…

Até que veio aquela terrível tormenta ao largo dos Açores, a primeira tempestade de João Ramalho! O medo foi tanto que ele não parava de ouvir sem parar a praga de sua mãe Catarina, quando ele manifestara, todo entusiasmado, seu desejo de ir para Lisboa e engajar-se na tripulação de um barco que demandasse rumo dos Brasis.

Pois a mãe ficou uma fera e, esgotado o recurso das célebres pontadas, ela o ameaçou com uma terrível praga:

– Como engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste num barco grande; o dia que fizeres isso, vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura. Tu és bicho da terra, como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não os aceita de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? T’o proíbo! E, se um dia me desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu. Se me desobedeceres, perecerás numa tempestade.

Por isso, quando a tormenta colheu a pequena flotilha ao largo dos Açores, João Ramalho encheu-se de medo de morrer afogado, pois havia desobedecido sua mãe e o mar o castigaria, tal qual ela havia prometido.

Mas a tempestade acabou passando e nenhum navio foi a pique. João perdeu o medo de que a praga da mãe fosse um mal inevitável. Viu-se sereno pelo resto dos dias de navegação, adorando sua nova condição de marinheiro.

Então o momento tão esperado chegou: sinais de terra começaram a aparecer: aves e sargaços, detritos e galharias, disseram a todos que logo veriam no horizonte os Brasis. E de fato, no dia seguinte, do meio da névoa desse horizonte, surgiu uma elevação de terra que deixou a todos na maior excitação. Mais algumas horas de navegação e poderiam lançar ferros ao largo da costa da nova terra lusitana. Então desceriam nos escaleres e João Ramalho cairia no mundo das terras dos Brasis. Desertaria da tripulação e haveria de começar a ganhar sua fortuna pessoal.

Mas, ao invés de navegarem placidamente rumo à costa já visível, o que aconteceu foi que os navios foram recebidos por outra tremenda tempestade, muito mais forte do que a que enfrentaram nos Açores. Os ventos chegaram rápidos e rápidos cresceram, surpreendendo mesmo os mais experientes marinheiros e comandantes. Com os ventos vieram as nuvens carregadas e das nuvens carregadas desabou o dilúvio. Relâmpagos iluminavam a escuridão que se fez em pleno dia e as ondas subiram agigantando-se muito mais altas que o convés das caravelas. E justamente aquela em que João Ramalho estava foi a única que não resistiu ao empuxo das ondas. A caravela foi a pique, afundando às vistas da costa brasileira.

Então João Ramalho teve certeza que a praga de Catarina se cumpriria. “Filho desobediente e cabeçudo, bicho da terra, o mar castiga!” Ainda assim decidiu que não entregaria a carcaça facilmente à morte. Agarrado a um pedaço de trave, conseguiu manter-se boiando e foi nadando com um esforço sobre-humano em direção à costa que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando estava quase chegando, no entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho aceitou o inevitável. Era o fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os músculos lhe doíam como se tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João largou a trave e fez uma última arremetida desesperada em direção à areia branca. Tarde demais, no entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar, engolindo água e não conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro.

João Ramalho teve a sensação que estava despertando de um longo sonho. Então aquilo é que era morrer! Havia morrido afogado e agora estava deitado de barriga para cima em algum lugar que não sabia o que fosse. Estava completamente seco e um calor agradável tomava conta de todo seu corpo. Que delícia para quem, momentos antes, lutava como um louco contra aquela água gelada. Que calor gostoso, que chegava a lhe dar quentura até nos ossos! E uma ardência diferente na pele.

Ah, se morrer era assim, então morrer era bom! A praga de sua mãe se cumprira, mas ele não estava infeliz. Fechou os olhos novamente e continuou desfrutando do calor amigo, que parecia vir de um sol sobrenatural. Então pareceu-lhe ouvir algo como cochichos e risadas leves de pessoas e uma sombra toldou-lhe a visão da luz avermelhada, que se infiltrava através de suas pálpebras fechadas.

João Ramalho abriu os olhos e o que viu deixou-o extasiado. Sim senhor, estava morto e bem morto, mas estava no Paraíso!!! Pois além daquele calor maravilhoso, além daquele sol dourado, o que ele viu logo acima de sua cabeça lhe deu essa certeza:

   Uma ratinha!

Sim, não havia dúvida. Era mesmo uma ratinha, aquela mimosa rachinha que as mulheres têm no meio das pernas, só que essa não tinha aquele tufo de pelos negros e crespos, tão ramalhudos quanto sua barba. Era uma ratinha sem pelos. Aí mesmo é que João Ramalho teve certeza que estava no Paraíso, pois essa era sua concepção de Paraíso há muito tempo: um lugar onde um homem chega e encontra uma mulher maravilhosa e jovem a esperá-lo. Uma só? Não, o que João via agora, a pairar sobre ele, era uma nuvem de ratinhas, todas peladinhas, todas do Paraíso. Muitas mulheres muito jovens andavam ao redor dele, conversavam e riam.

Uma delas, mais decidida, ajoelhou-se ao lado dele e começou a puxar a sua barba. Logo muitas outras fizeram a mesma coisa. E João viu que elas estavam todas entusiasmadas com sua barba ramalhuda.

Que sorte que tivera de morrer! Será que era verdadeira a história que o tio Xavier lhes havia contado, numa noite de chuva e bebedeira? Era uma história que dizia que os árabes que morrem em batalha vão direto para o paraíso e lá recebem pelo menos vinte jovens virgens para amar, mulheres que nunca envelhecem, nunca engordam e não têm umbigo.

Mas as donas daquelas lindas ratinhas sem pelos tinham umbigo! Então o que queria dizer aquilo tudo?

No instante seguinte, quando as mocinhas o tomaram pelos braços e o fizeram erguer-se, João Ramalho compreendeu a verdade: ele não tinha morrido! Estava vivo, vivíssimo e no meio de um grupo de indiazinhas tagarelas e totalmente peladas. Que raparigas formosas! Que cor maravilhosa de gente saudável, sem aquelas brancuras flácidas de sua mulher Catarina. E sem aquele monte despropositado de pentelhos a tudo atrapalhar. Estas aqui andavam nuinhas em pelo, quer dizer, nuinhas sem pelo, coisas mais formosas nunca lhe fora dado observar em vida. E como, vistas e sentidas tão de perto, delas não se exalavam aqueles cheiros azedos que vinham de sua mulher descuidosa e pouco dada às higienes?

As indígenas cheiravam à pele!  Exalavam um aroma sutil e adocicado de pele limpa e saudável de jovem fêmea. E, hom’essa, que gente mais bem-humorada, pois se é! Onde, em todo Portugal, poderia ele imaginar gente assim tão amistosa, sorridente, e dada por demais ao rir e ao brincar?

As moças o foram puxando pelas duas mãos e empurrando-o suavemente pelos ombros, até que ele entendeu que queriam que caminhasse com elas em uma certa direção. João seguiu com elas, enquanto as comia com os olhos, vendo aquele festival de corpos perfeitos e desnudos, algo com que jamais tinha sequer sonhado na vida. As indiazinhas percebiam claramente a excitação do português e o atiçavam ainda mais, parecendo divertir-se muito com aquilo tudo. Conversavam e riam às gargalhadas, estavam completamente à vontade, nuas daquele jeito na frente de um homem.

João compreendeu claramente que havia sobrevivido ao naufrágio, mas se isso tinha acontecido fora por um verdadeiro milagre, pois a última lembrança que tinha é que havia desistido de lutar e começara a afundar e beber daquela água salgada e fria. Então havia perdido os sentidos.  E isso tudo teria acontecido no exato momento em que seu corpo havia dado à praia. A própria água o havia jogado na areia e depois, com o recuar da maré, ficara ele ali exposto ao sol, que devia ter surgido logo depois da tempestade. Esta devia ter sumido tão rápido quanto aparecera. E ele tinha acordado seco e com aquela sensação maravilhosa de estar aquecido até à medula dos ossos.

Então aquele grupo de adolescentes índias o havia encontrado, puxado sua barba ramalhuda e, fazendo-o levantar-se, estavam agora tangendo-o em direção a um riacho próximo. João contou-as mais uma vez: eram dezesseis raparigas, cada uma mais formosa do que a outra. Esguias, de bom corpo, alegres, risonhas, gente de uma simpatia que ele nunca tinha visto em vida. E cheirosas, perfumadas. Todas faziam questão de tocar nele, de pegar seus braços e mãos, de tocar seus ombros e até suas pernas. Como estavam todas nuas, era difícil para o português esconder o estado de tremenda excitação em que se encontrava. Ainda bem que estava vestido!

Mas pior ficou sua situação quando chegaram ao riacho. A mocinha que parecia ser a líder de todas falou várias palavras que ele não entendeu, mas apontou para suas roupas e levou os dedinhos ao nariz diversas vezes. João Ramalho entendeu que suas roupas fediam; afinal, ele também tinha um nariz.

Um segundo depois, quando todas as moças caíram sobre ele e começaram a arrancar suas roupas, o português ficou encabulado. Como apontavam para a água, entendeu que elas queriam que ele tomasse banho. Quando a última peça, a mais íntima, foi arrancada, João tentou esconder o que ele aprendera em Portugal a chamar de “suas vergonhas”. Mas as indiazinhas foram implacáveis. Puxaram-lhe as mãos e os braços e o português foi obrigado a exibir-se em estado de fogosa excitação sexual.

As meninas caíram na gargalhada, achando muito engraçado que um homem tivesse vergonha de aparecer como a natureza manda. Esses brancos eram mesmo muito estranhos, além de muito sujos e mal-cheirosos!

As garotas cercaram João e o empurraram para dentro do riacho, jogando-o do barranco na parte mais funda. Ele sentiu com agrado a água pouco fria no corpo e começou a nadar, mas viu que elas tinham pulado n’água também. Nadaram todas em sua direção, cercaram-no e começaram a passar a mão por todo o seu corpo, não se limitavam mais somente à barba e aos cabelos crespos e desgrenhados. Sentiu que várias delas o pegavam “lá” e morriam de rir.

Ao mesmo tempo, elas o esfregavam com força, umas duas ou três tinham umas espécies de pedras lisas na mão e passavam-nas pelo corpo dele, como se aquilo fosse um sabão europeu. Não faziam cerimônia, mãos e pedras passavam por todo e qualquer ponto do seu corpo.

Então o estado de excitação do rapaz chegou ao máximo que ele podia aguentar e o inevitável aconteceu. Ainda bem que ele estava dentro d’água! Uma das índias que o manipulavam lá, percebeu o fato e relatou isso às outras, rindo à gargalhada plena. E fazendo um sinal, aproximando as mãos uma da outra, como a mostrar que algo maior de repente ficara pequeno. Todas riram muito e João Ramalho não sabia o que fazer, totalmente vexado de vergonha, como jamais lembrava-se de ter estado na vida.

 

(Excerto do romance histórico “JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO”, primeiro volume da série “DE FRANÇA E BRASIL”, uma quadrilogia que abarca o início do período colonial brasileiro, de 1532 a 1624, sob forte influência portuguesa, espanhola, francesa e holandesa:

1 – “João Ramalho no Paraíso”;

2 –  “João Ramalho Fundador”

3 –  “Villegaignon no Inferno”

4 –  “Monsieur Le Prince Essomericq”

 

 

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