Joel Gehlen (Marinaldo)
TEXTO-PRESENTE PARA JOEL GEHLEN
Marinaldo de Silva e Silva
Não teria como escrever para você sem ser autobiográfico. Não teria como me dirigir a você se não fosse agradecendo. E não teria como lembrar de você, sem lembrar da primeira vez. Lembro o ano, 2001. Não sei o mês e dia exatos, mas lembro que chovia, e muito! Entremos então na Rua Orleans, calçada com pedras, e um jovem poeta recém-inaugurado embaixo dessa chuva, de bicicleta, sem guarda- chuva, sobre esses paralelepípedos. Eu havia escrito um poema chamado “O Retrato da Poesia na Parede”, em alusão a uma mulher, capa daquele mês do Calendário Pirelli, que se exibia dentro de uma obra em construção, onde eu era auxiliar de pedreiro. Ela era chamada das coisas mais degustáveis. Alimento, nos adjetivos, me perguntaram o que ela significava pra mim… “Fala poeta, o que essa gostosa significa”. Era quase uma afronta, como se ser poeta fosse depreciativo. Com sentimento contrário, eu lembro que disse que ela era o retrato da poesia na parede. Não sossegado, construí um poema que levou esse nome.
Naquele dia, saindo da obra onde trabalhei 4 meses, eu encontrei “poetas de verdade”, como eu dizia, colocando poemas num varal na Praça Nereu Ramos. Eu parei na praça, li alguns versos, alguém olhou minhas botinas, eu era franzino e estava empoeirado, queria pendurar o meu “RETRATO” naquele varal como minha mãe fazia com as roupas brancas para quarar ao sol. E ali eu pendurei “O Retrato da Poesia na Parede”. Um poema surrealista, escrito sem eu saber que o surrealismo era uma escola. Num domingo, na coluna do Diário Catarinense, fazendo “serão” na obra, lá estava eu lendo o meu “RETRATO”, capturado da praça e publicado por um certo jornalista chamado Joel Gehlen. Embaixo, autor desconhecido. Joel, que nos textos religiosos é considerado um profeta menor, não sei o que profetizava, mas para mim ele se fez maior, tinha levado às páginas do jornal um poema de um autor desconhecido! Ele tinha me descoberto sem saber quem eu era, e agora eu estava ali, embaixo de chuva, com a bicicleta toda velha, tentando encontrar a casa do jornalista para lhe dizer obrigado, para dizer que eu tinha um rosto, um nome, e era esse rosto e esse nome que queria agradecer…
O texto refinado de Joel dá vestígios de onde vem sua palavra. Ele pode falar do pão, da água, da energia elétrica, que sempre trata alguma palavra que parece neologia, ele sempre vestirá seu texto com uma poesia explícita, e cinquenta e cinco escondidas. Escavando, a gente descortina MACEGA, LUZ UNTOSA, INTERDITAS, JUNTA. Lendo seu texto a gente encontra sua Mamborê, os bretões da sua terra, as benzeduras e as benzedeiras que faziam encantamentos e espantavam a tempestade com cruz de farinha. Biográfico (mas qual autor não é) ele se revela tanto quando “croniqueia” a coisa, quanto quando assunta uma outra coisa inventada. Em seu relato do cotidiano ou em sua invenção, sempre vem junto o rastro do garoto, que dizia que das coisas da sua meninice, das proibições de então, “a mais profundamente fincada era a proibição de comer terra. Nossa mãe tinha um medo quase pânico, como se todos os males do mundo fossem ingeridos com o chão, e punha os irmãos mais velhos de sentinelas a tomar conta para que os pequenos não infringissem a coisa proibida. Muitos foram as chineladas que lhes acarretei pela burla dessa lei materna. Garrei o hábito de comer torrões, antes mesmo de falar. Acho até que os diluía no leite das mamadeiras {…] Tanto me alimentei de teu chão, Mamborê, e em tal monta te dessedentastes de minhas lágrimas, que longe da doçura e misericórdia de tua infância, ando sempre errante e confuso pelo vale do degredo. Nutrido de teu seio, me fiz no que sou fígado e pulmões; no que é em mim braços e mãos e cresce na voz que deponho na escrita”.
A poesia – Entidade salvadora que alicia os humanos, que muitos buscam colocar dentro de versos e registram como poema – é um dos alicerces da escrita de Joel. Sempre de chapéu, simples e complexo, numa timidez que alguns podem confundir como se o “cabra” fosse esnobe, nosso escritor desenha as palavras, traz da memória mais que recordação, mas uma aliança. E nos permite fazer da sua verve um parque onde a gente brinca de gangorra, de esconde-esconde, e de balanço que de tão certeiro, quase não balança. A poética de Joel é refinada. É digna da Academia. Entra nos padrões da mesma e foge dela ao mesmo tempo. É feita de respostas mediante as perguntas do “por que estou aqui?”, é escrita sem vergonha em se revelar, em tudo velar, em nada esconder. Bonito ler sobre sua mãe, sobre sua raiz de trigais espigados, sobre as sementes que um dia ganhou de presente e que vinham embrulhadas em três camadas de papel. É bonito, eu me transportei para dentro de um templo cheio de calares porque o sentido da magia eram como colares de enfeitação, quando li ele dizendo sobre uma comunhão com o tempo e a oração “e me desenha na testa os cardeais da cruz […] ia desenhando a rosa dos ventos sobre a cabeça. O tempo é uma máquina de moer”…
Sei que o tempo é curto. Na realidade, estamos todos apressados. Autobiográfico de novo, faço um chamado para os que recebem seus presentes: abram. Quando eu os coloco na caixa me preocupo com a recepção do destinatário, mas lembro da minha mãe dizendo: Filho, todo mundo gosta de ganhar uma lembrancinha. Acho que lembro do próprio Joel e toda sua escrita sobre doação. E nesse lance de lembrar, volto para a Rua Orleans, dia de chuva – (só para esclarecer, a chuva caiu no meio do caminho) – eu pedalando e lembrando do que tinha lido dele, de algo que nunca saiu da minha cabeça, “Quando dizemos uma palavra, é como se riscássemos um fósforo no porão escuro do leitor. Eu estava prestes a encontrar com alguém muito importante. Estava há minutos do seu portão. Uma poeta tinha me dado o endereço dele. Lá estava eu na frente de sua casa. Molhado, surrado, esperançoso, ainda sem saber qual direção seguir, ele apareceu. Eu gritei “eu sou o autor desconhecido”, e agora estou aqui.