Justiça social e direito social

Os Poetas, como as leis, não podem ter palavras inúteis, nem obscuras ou dúbias.

O extraordinário THIAGO DE MELLO diz, clara e profeticamente, de que maneira se poderão realizar a Justiça Social e o Direito Social, num sonho poeticamente realizável.

Tomo dele o decreto e o declamo:

        “Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira.

        Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

        Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

        Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem como a palmeira confia no vento, como o vento no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

        O homem confiará no homem como o menino confia em outro menino.

        Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.

        Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras.

        O homem se sentará à mesa com o seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

        Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

        Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridão, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

        Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar amor a quem se ama sabendo que é a água que dá à planta o milagre da flor.

        Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.

        Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

        Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco.

        Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que é belo.

        Decreta-se que nada será obrigado, nem proibido.

        Tudo será permitido, sobretudo brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

        Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

        Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras.

        Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal, para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Fica proibido o uso da palavra liberdade a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.

        A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, ou como a semente do trigo, e a sua morada será sempre o coração do homem.“ 

Algumas palavras, para serem autênticas, deveriam despir-se de adjetivos. Vir desacompanhadas. Escoteiras.

Valer por si sós.

Se não, vejamos: Por que liberdade com responsabilidade? Liberdade é liberdade!

E todos nós sabemos ou deveríamos saber o seu significado inteiro.

Não há duas formas de liberdade, como não há duas formas de verdade.

Há uma só e absolutamente completa. Ou não é.

Liberdade que se haure na igualdade e se aperfeiçoa com a fraternidade.

São, ainda, os três ideais revolucionários do mundo moderno. Liberdade, na política; fraternidade, no internacionalismo; igualdade, nas classes.

Do mesmo modo, a Justiça.

Não há justiças. Existe uma única, sem apelidos, sem adjetivos. Isto é, assim deveria ser considerada.

Por que, então, inventarmos uma Justiça Social, se toda ela o é, ou deve ser?

Para a diferençar de qual?

Da outra, da individualista, fria, de olhos vendados, espada e balança às mãos, incapazes de se pronunciar de igual modo em relação a todos e a cada um, fazendo com que se diga que a lei é igual para todos, mas nem todos são iguais perante ela.

Justiça, tão bem simbolizada, que vem atravessando séculos, não é, contudo, a que almejamos fazendo realizado o Direito, este Direito que, também, chegamos a apelidar, na ânsia absurda de o distinguir.

Justiça Social. Direito Social.

Como se fosse possível estabelecer distinções na meta de se alcançar a realização, através da Justiça, o Direito de cada qual e o coletivo, principalmente.

O tema, certamente, se esgotaria, se exercitássemos, talvez, a mais repetida, e a tão pouco posta em prática, máxima: o amor ao próximo, ao nosso semelhante. Se tivéramos a coragem de inibir as nossas ambições, superar o nosso egoísmo, sufocar as nossas intenções subalternas e fazer desabrochar, em toda a sua plenitude, o amor fraternal, engrandecido pelo nosso auto-aperfeiçoamento.

Porém, reconhecemos, ainda não somos capazes de vencer as nossas paixões, de afogar nossos vícios, de erguer monumentos às nossas virtudes.

Por mais que julguemos ter evoluído, espiritual e fisicamente, vangloriando-nos de havermos descido das árvores, de nos havermos posto em pé e de estarmos vendo o horizonte e prestes a sermos senhores do Universo, ainda não logramos expulsar de nós mesmos, do nosso interior, a barbárie, que nos impele a justificar o domínio e exploração do nosso semelhante, do nosso irmão, na volúpia do poder, tenha ele a forma econômica, política ou jurídica, que apresentar.

Somos, sem dúvida, o único dos seres capaz de justificar as suas ações, mesmo as mais nefandas.

Todavia, reconhecendo esta nossa fraqueza, esta nossa fragilidade, esta nossa incapacidade para sermos mais humanos do que animais, é que nos convocamos para reuniões tais, a fim de, em conjunto, analisarmos, com humildade e seriedade, os problemas, buscando-lhes soluções e alternativas, que nos elevem e nos tornem, instante a instante, mais senhores de realizar o sonho universal da Sociedade, repousada na Liberdade, conformada na Igualdade e unida na Fraternidade, sem o que a Justiça Social e o Direito Social não se farão e/ou restarão vivos e permanentes.

É, sobretudo, a ausência de desesperança que nos obriga e nos permite este encontro, durante o qual vamos trocar experiências e ideias e dizer de viva voz o que precisamos e o que desejamos fazer para que, num dia qualquer e que não há de estar distante, surja a Aurora por nós tão ansiada, após noites negras de arbitrarismo despótico, violência injustificável, exploração ignóbil, por que tem passado o Mundo.

De tal forma entusiasmado pela necessidade de proclamar premissas e, de certa forma, envolvido pelo poema de Thiago de Mello, quase me desviava do objetivo deste tema.

Porém, para se falar de Justiça Social e de Direito Social, há que se ser sensível à poesia e o declamar do poeta:

        “ Fica permitido que o pão de cada dia

        Tenha no homem o sinal de seu suor”

A proposta bíblica “ganharás o pão com o suor do teu rosto”, sobre ser eterna, não estabeleceu distinções.

Não excluiu qualquer um de nós.

Não criou diferenças.

Nem admitiu que uns ganhassem o seu pão com o suor do rosto alheio.

A todos foi imposto o mesmo dever de o ganhar através do trabalho. Uma das bases do desenvolvimento da sociedade.

Mas um homem, em tempos recuados, vislumbrou a hipótese de que o mais forte poderia impor a sua potência sobre o mais fraco e o obrigar a lhe pagar tributo, seja sob que forma fosse.

Este homem transformou-se em classe, apropriou-se da terra, dos seus frutos, de todos os meios de produção e dos seus resultados.

Criou a desigualdade.

Potente e prepotente, estabeleceu, proclamou, expandiu, defendeu a exploração do semelhante.

E, fazendo prosélitos, o ameaçou e vem ameaçando durante séculos com todas as formas de arbítrio, inclusive utilizando a Justiça e o Direito, caso se rebele.

Foi este dominador, como indivíduo e como classe, por razões dialéticas, quem, também, originou a rebeldia que, mais de uma vez, em meio ao emaranhado das leis que o protegiam, viu o fraco, o dominado, como pessoa e como classe, insurgir-se e procurar estabelecer uma nova Justiça e um Direito novo.

Viu surgir desta inconformidade a semente de Justiça Social para proteger Direito Social.

Nada disto foi de graça.

Nada disto continua sendo de graça. São conquistas de milênios dos povos.

É a luta social em todo o mundo. Não mais, apenas, com o caráter de classe, ainda ontem motivo de todas as revoluções. Porque só esta luta, travada em cada canto da Terra contra toda e qualquer espécie de domínio, exploração, inquisição e tirania faz o Ser Humano acreditar no Amanhã, no Sol que, ainda, vai brilhar para fazer florescerem as mil flores, cuja beleza e cujo perfume jamais serão privilégios de alguns, senão dádiva para cada Homem.

Falo de uma Justiça Social, pensando em Salomão e nos Macabeus.

A tão louvada justiça salomônica, se sábia, exemplarmente individualista.

Enquanto a dos Macabeus social, visando atender, não postulações pessoais somente, mas, sim, aquelas de todo o povo.

Esta a por nós perseguida. Entendo o Direito como razão social, não discriminatório, seja qual for o conceito que dele se faça; não abstrato, hermético, personalista, mas vivo, concreto, aberto, dinâmico e moderno; não representando, apenas, o meio de onde emerge, mas frutificando de uma realidade global.

Pois, hoje, mais do que em qualquer época, ligados pelos meios de comunicação e de uma experiência, impeditiva de enganos, por cima das ideologias, os homens começam e precisam encontrar-se, unindo-se, na certeza da possibilidade de realização de ideal comum contra o qual serão impotentes as forças dos pretendentes à dominação do mundo e à subjugação e exploração.

O Homem volta a ser a esperança do Homem, não mais o seu lobo.

Os que aplaudiram Sandino, lastimaram a morte de Mao, se indignaram com os atentados a João Paulo II, Sadat e Reagen, se solidarizaram com Walecha, lutaram e lutam para salvar a Natureza através da ecologia, o fizeram independentemente de matizes ideológicos.

É o mundo convergindo para o exercício da Justiça plena e da realização total do Direito, com propósitos nitidamente sociais, expurgando privilégios de minorias e ampliando o interesse do geral. Uma nova concepção, impondo regras a serem observadas por todos, indiferentemente às suas posições na sociedade, mesmo conquistadas, ontem, em ações revolucionárias para a época.

Na aparência isto é um mito, uma utopia.

E podemos argumentar, pessimistas, com o episódio do Messias, abandonado pelo povo, traído, negado e duvidado pelos discípulos.

Entretanto, poderíamos contestar, arrazoando que, mais do que nunca, há, em toda a parte, os que lutam pela liberdade, igualdade e pela fraternidade, como valores de permanente atualidade; pela pureza do meio ambiente e contra a hecatombe nuclear; às claras ou clandestinamente contra os regimes despóticos, o domínio econômico multinacional, as sedimentações políticas, as estratificações jurídicas.

E se dão as mãos, solidárias, em torno à aspiração maior de tornar feliz a Humanidade.

Desçamos à terra. Sejamos realistas.

Mas o sonho não acabou.

Para lograrmos tal desiderato, por bastante tempo, ainda, se imporão as leis.

Não aprendemos, suficientemente, a respeitar, com espontaneidade, o Direito. Qualquer Direito.

E as normas têm de coagir, infelizmente, através de um dos poderes do Estado.

O Direito Social, dirigido ao indivíduo socializado, ao Ser não mais isolado, alienado, ausente e alheio ao grupo dominante e privilegiado, sofreu e sofre restrições, e, até, boicote por parte destas minorias, que se têm eleitas e a quem nenhuma força parece poder alcançar.

Sabemos o quão difícil é atingir estes grupos, poluidores da Economia, da Política, da Justiça e da própria Natureza, no afã de conservar suas prerrogativas, certos da impunidade para os seus atos. Sentem-se acima e além de qualquer lei, de qualquer poder. São eles, próprios, a lei e o poder.

Imaginam-se deuses de um Olimpo multinacional.

Forçoso é atingi-los, chamá-los à razão, dar-lhes a dimensão que devem ter, estabelecer-lhes a medida de que são possuidores e merecedores.

O poder econômico, político e jurídico não pode fugir à equitatividade.

Os que o manejam são tão iguais quanto o resto da Humanidade. Ou, pelo menos, terão de sê-lo.

E, por este modo, têm de submeter-se à Justiça e ao Direito Social, porque não discriminam, mas, antes, procuram atingir a grande massa dos deserdados, daqueles a quem a fortuna não encontrou ou foi sonegada, os quais, no anonimato das suas vidas, sem brilhos, nem luzes, curtem a proposta bíblica, ganhando o seu pão e, por imposição, aos milhões, com o suor dos seus rostos, numa inversa distribuição e fruição da riqueza.

Faz-se preciso uma Justiça Social para que o Direito equitativo, mais justo e perfeito, sem deformações, a todos atinja, consolidando uma Sociedade em que prevaleçam a sabedoria, a força, sem violência, e a beleza, de cuja harmonia resulte a felicidade do Ser Humano.

Reconhecemos sermos imperfeitos e por mais buscarmos – pessoal ou coletivamente – atingir a semelhança do que se entende por Criador, sentimos o imperativo da força de algo, capaz de nos conduzir e aproximar do que se nos represente a perfeição.

E isto é a lei, o direito escrito, cujos objetivos – damo-nos conta – procuram sempre ser falseados.

As minorias privilegiadas, extremamente infensas às mudanças evolutivas ou revolucionárias, aprenderam com rapidez a perder os anéis e a ficar com os dedos.

E, por esta aprendizagem, na elaboração das leis, na interpretação do Direito e na Justiça. Os que vão cedendo, tanto quanto os que vão mantendo, deixam os anéis escorrerem dos dedos, mas não perdem estes, com os quais podem reconquistar aqueles.

É a Justiça Social do nosso tempo. O Direito Social dos nossos dias.

Sobre ambos há que se concluir:

Para o seu processo de realização terá de conquistar o povo em primeiro, com sua força consciente, um Estado Democrático, de fato e de direito, onde todos os segmentos da Sociedade, através das suas entidades de classe e categorias, participem, de maneira igual, na codificação das leis magnas, substantivas e adjetivas; forneçam, obrigatoriamente, os subsídios para o Congresso Nacional, representando-os com legitimidade, as votar e aprovar, excluídos os códigos rígidos em que as razões de decidir não o sejam à base de valores econômico/monetários, mas dos fins sociais a que se propõe uma Justiça, que urge ser dinâmica, atualizada, moderna, independente de custas e, na qual, as postulações, os patrocínios das causas, sejam privativos dos advogados e em que os juízes, togados e classistas, sejam concursados, mas principalmente eleitos, para maior garantia dos interesses e direitos das partes, cujo equilíbrio não pode ser violado, sob pena de se frustrarem todas as aspirações deste processo.

 

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