Lar Abdon Batista – 100 anos de história
INSTITUIÇÃO E SOCIEDADE
ASYLO DE ÓRPHÃOS E DESVALIDOS DE JOINVILLE
Uma questão social – Em 1911 era consenso entre a sociedade joinvilense que os problemas sociais estavam estabelecidos como o lado sombrio de uma cidade que se ufanava de tanto progresso. Consolidada como município após desmembrar-se de São Francisco em 1866 e com a melhor infraestrutura da região, acabou por tornar-se o ponto de referência dos habitantes dos novos núcleos coloniais surgidos nas últimas décadas do século dezenove, como São Bento, Jaraguá, Bananal (atual Guaramirim) e Hansa (atual Corupá). A única alternativa para quem precisasse tratar da saúde ou buscar ajuda em momentos de grandes dificuldades, como doença, morte e pobreza, era dirigir-se a Joinville
Uma questão política – Na edição de 8 de abril do mesmo ano, sob o título “Criação de Asylo”, o Jornal do Commercio de Joinville anunciava para o dia seguinte, às 5 horas da tarde, uma reunião no Clube Joinville com as pessoas que haviam acolhido a ideia da fundação de um orfanato para abrigar os pequeninos órfãos que por aí vivem no desamparo. Era a imprensa assumindo a campanha pró-asilo, ou melhor, o jornal porta-voz da facção liderada por Abdon Batista, na qual predominavam os luso-brasileiros e/ou ex-federalistas.
Dessa vez o grupo que estivera reunido no Clube dias antes, a lembrar episódios da Revolução Federalista e outros tantos “causos”, teria por tarefa dar os primeiros passos em direção a ações específicas, capazes de dirimir os males sociais que deixavam no desamparo órfãos pobres e velhos desvalidos. E assim foi. O seleto e prestigiado grupo atendeu ao chamado, comparecendo mais uma vez ao salão do Clube Joinville para a fundação da “Sociedade de Caridade Asylo de Órphãos e Desvalidos”, da qual Abdon Batista seria o primeiro presidente. A assembleia transcorreu sob a presidência do Dr. Heráclito Ribeiro, juiz de órfãos, e foi secretariada pelo Dr. Arthur Costa, genro de Abdon Batista, quando foi aprovada, por unanimidade, a proposta de Oscar Schneider para que a Instituição estabelecesse não somente um asilo para órfãos desprotegidos, como também para os pobres sem lar que vivessem da caridade pública.
Depois de aprovados os estatutos foram eleitos os diretores, o conselho fiscal e respectivos suplentes da Sociedade. Abdon Batista foi eleito provedor, tendo como vice Oscar Schneider, enquanto a tesouraria era delegada a Gustavo Richlin e a secretaria a José Honorato Rosa. Os senhores. Augusto Urban, Patrício Rogério da Maia e Germano Stein, constituíram o conselho fiscal, com os suplentes Domingos da Nova Júnior, Henrique Alves Dingee e Henrique Meyer. Nessa mesma ocasião foi eleita uma comissão para redigir os estatutos, aprovados em assembleia posterior [1].
Ganhava personalidade jurídica a Sociedade de Caridade Asylo de Orphãos e Desvalidos, com a publicação dos seus estatutos anunciada pelo Commercio de Joinville de 29 de abril que, no entanto, deixava entrever vestígios de uma mal disfarçada competitividade política:
“ (…) Todas as consciências sãs estarão certamente do nosso lado nesta missão piedosa, em que a nós coube o papel de convocar e despertar as energias, destinadas a essa obra pia, que pediam boa vontade e iniciativa para produzir os melhores resultados. É preciso que a maledicência proterva não assalte o templo da caridade cristã e social. O Asilo é um estabelecimento destinado ao bem da humanidade, ao amor ao próximo, não tem cor pessoal nem partidária. Hoje tem uma direção eleita pelos sócios atuais, amanhã poderá ter outra, eleita na forma dos estatutos. É de se esperar que essa utilíssima instituição mereça o apoio, o auxílio de todos, sem preocupações mesquinhas, sem considerações ridículas, que é preciso, de uma vez por todas, serem abolidas da nossa comunhão social(…)
De fato, a construção do asilo tornara-se alvo de um embate político que se expressava pela troca de artigos ácidos entre a Gazeta de Joinville, jornal da oposição, e o Commercio de Joinville e o Die Fackel, estes de propriedade do então Prefeito Abdon Batista. Na edição de 22 de abril a Gazeta de Joinville desenterrava fatos passados há anos para minimizar o “feito” dos seus adversários, ao publicar artigo afirmando que a ideia da instalação de um asilo em Joinville partira do pastor protestante J. V. Czékus, já no ano de 1897. Ao retirar-se da Comunidade Evangélica o pastor deixara em caixa, para aquele fim, cerca de oito contos de réis, importância que teria percorrido um longo percurso na Caixa Econômica, além de ser acrescido com doações do Estado.
Afirmava também a Gazeta que o Coronel Felipe Schmidt, então Senador Federal, conseguira o auxílio de 10 contos de réis, dos quais Oscar Schneider, quando prefeito, havia “lançado mão” para fazer face a despesas com a construção da cadeia pública, em troca de apólices fornecidas pelo Governo do Estado para este fim, pois na ocasião não encontrara tomadores. E mais: em visita a Joinville por ocasião do cinquentenário da cidade, em 1901, quando foi lançada a pedra fundamental do asilo, o mesmo Coronel Felipe Schmidt, já como Governador do Estado, oferecera mais três contos de réis.
Nos cálculos dos redatores do jornal, todos os recursos até então arrecadados para a construção, inclusive os juros vencidos, formavam um capital de 30 contos de réis que estariam depositados para este fim. Enfatizava o jornal que a ideia da construção do Asilo não havia caído no esquecimento do grupo opositor. Somente ainda não fora construído por falta de recursos que garantissem a manutenção do orfanato.
Ora, se se quiser construir um edifício com todos os requisitos que exigem obras desta natureza, como jardins, mobiliários, oficinas, etc., o dinheiro existente quando muito chegará para as despesas a se fazerem, ficando os encargos com a administração e asilados à mercê do acaso [2].
Ao que parece, até então a construção do asilo não fora prioridade, uma vez que os recursos existentes haviam sido canalizados para a construção do Hospital Municipal. Depois novamente tomaram outros rumos, dessa vez para a cadeia pública. O fato é que Abdon e seu grupo encamparam a causa, estavam dispostos a executá-la e a oposição reagia.
Que qualquer ponha em execução uma obra começada está direito, mas pretender por isso apagar os méritos alheios é muita ousadia. Façam o Asilo, mas não se esqueçam que o seu iniciador foi o padre evangélico J. V. Czékus, e que parte do capital foi arrecadado dentre o nosso povo”[3].
Iniciava-se, então, nova etapa que envolveria a construção do prédio onde deveria funcionar o asilo, na rua Procópio Gomes, em terreno doado pela Prefeitura.
Mãos à obra – Coube à Associação de Caridade Asylo de Órphãos e Desvalidos de Joinville assumir a responsabilidade de levantar recursos para a construção do prédio onde seria instalado o asilo. Esses recursos procediam, em princípio, das contribuições dos associados, da Prefeitura, do Governo do Estado, e dos sócios beneméritos, assim considerados aqueles que fizessem donativos no valor igual ou superior a 500$000 e os que houvessem prestado relevantes serviços à Associação. Em 16 julho de 1916 foi inaugurado o prédio onde no mesmo dia ingressaram as primeiras crianças e os primeiros idosos.
Um modo de estar no Brasil-República – Assim como a cidade se modernizava e a população crescia, o processo de institucionalização acelerava-se não sem os naturais conflitos que ocorrem sempre que se estabelecem novos espaços de poder. Mais de duas décadas haviam transcorrido desde a proclamação da república e, passadas as turbulências dos primeiros tempos e assentados acordos no interior do Partido Republicano Catarinense, as novas lideranças políticas e econômicas da cidade já estavam estabelecidas. Restava-lhes garantir o seu modo de estar no Brasil-República, quando os ideais republicanos de civilização passaram a constituir-se na principal referência para as elites que disputavam projetos destinados à construção de uma nova sociedade. Não sem uma lógica no contexto nacional, em 1916 foi registrado em Joinville o Tiro-de-Guerra 226, e dois anos após, em 1918, era instalado o 13º Batalhão de Caçadores, seguindo-se à reestruturação do Exército que se operava na época, em resposta aos novos conceitos de defesa nacional e certamente como um desdobramento da Primeira Guerra Mundial [4].
Ao mesmo tempo, os asilos e internatos adquiriram relevância política e social em várias cidades brasileiras, mesmo porque epidemias de febre amarela se alastravam pelo país, o que fazia aumentar a orfandade. Tirar crianças e desvalidos das ruas estava dentro do que se considerava progresso. Não é de se estranhar, portanto, que a “paternidade” do Asilo tenha assumido um valor político e social até então não requisitado.
As doações, no entanto, não foram exclusividade da elite: pequenos comerciantes, artesãos, sapateiros, padeiros, todos se lembravam do Asilo, especialmente no Natal. E assim, durante sua trajetória de altos e baixos, até aos dias de hoje nunca faltou à Instituição o engajamento da sociedade joinvilense aos provedores e autoridades responsáveis. Em grande parte, isso reflete o respeito e a solidariedade ao trabalho das Irmãs da Divina Providência, quase todas vindas da Alemanha. Afinal, grande parte da população era de origem germânica e certamente se orgulhava dos excelentes serviços que as irmãs vinham prestando a Joinville e arredores desde o início do século.
[1] A comissão era composta pelos senhores Alfredo Nóbrega de Oliveira, Axel Von Diringshoen e Francisco Simas.
[2] Commercio de Joinville, 15 de abril de 1911.
[3] A Gazeta de Joinville, 22 de abril de 1911.
[4] Sobre este assunto recomendo a leitura do trabalho de Guedes, Oliveira Neto e Oslka: O Exército e a Cidade: Joinville e o seu Batalhão, p.52