Lembranças (Hilton Görresen)
LEMBRANÇAS
Hilton Görresen
Quando chega a certa idade, obviamente a pessoa traz entranhado na alma um baú de lembranças: gostos, imagens, cheiros e sons. Trago da infância o cheiro de pétalas dos tapetes de flores que fazíamos, como alunos do colégio Stela Matutina, para as procissões religiosas. Trago o toque do vento de outono no corpo, correndo livremente pelas ruas. Trago a imagem das ondas calmas, refletindo o brilho do sol, nas tardes preguiçosas após o almoço. Trago ainda as imagens dos seriados de domingo, no Cine Marajá, em que torcíamos barulhentamente pela vitória dos mocinhos contra os vilões.
Trago, principalmente, os sons do rádio. Na época, não se vivia sem o rádio ligado. Iniciava com os programas sertanejos, assistidos pelo meu pai; após meio-dia, a crônica da tarde, na voz de Oranice Franco, com o belo fundo musical Moonligth Serenade; à tarde, o programa musical da Rádio Difusora, “falando da Babitonga para os céus do Brasil”. À tardinha, começo do anoitecer, a hora do Ângelus, ou da Ave Maria, com o prefixo musical que não consigo esquecer: “cai a tarde, risonha e serena, em macio e suave langor…”. Hora de recolhimento, de lembranças.
Aos finais de semana, a pedida era a Rádio Nacional. Programas de auditório, com artistas que conhecíamos somente pela voz. Minha infância foi marcada pelas músicas de Ataulfo Alves com sua voz inconfundível. Depois, Emilinha Borba, com voz de despertar lembranças. Emilinha era versátil, interpretava desde samba, marchinhas de carnaval, boleros, mambos e músicas juninas. Mas não havia música ou interpretes que eu não conhecesse. Não tinha ainda sete anos de idade, chorei a morte de Francisco Alves, conhecido pela Canção da Criança. Quando cantava: “Eles (os pais) querem que eu me prepare/ para o dia de amanhã…”, eu ficava matutando o que iria acontecer “amanhã”. Só podia ser a sessão de cinema.
À noite, junto com meu pai, ele sentado em sua poltrona de vime ao lado do rádio, me divertia com os programas humorísticos da Nacional. Muitos dos humorísticos da TV foram herança do programa Balança mas não cai.
Quando me volto ao período de adolescência, ouço as músicas de Anísio Silva, Miltinho, Dóris Monteiro e Dick Farney. Foram eles os precursores da Bossa Nova, a princípio irritante aos ouvidos, posteriormente salvos (os ouvidos) pelas melodias de Jobim e as letras de Vinicius de Moraes. Mas esse gênero embora festejado no exterior, não resistiu ao choque dos Beatles, e teve vida muito curta como preponderante no país. Mas ficou na memória afetiva a voz de Agostinho dos Santos cantando Manhã de Carnaval.
De gosto na boca, trago o de uma exótica mistura de licor de ovos com cachaça, no Bar Sereia, que originou meu primeiro e único porre na vida. O que me faz recordar dos tempos de ginásio e de alguns amigos que não mais encontrei.
A vida passa, o tempo vai se escoando, novos tempos, novas experiências mas aquilo que ficou nos pertence, e vamos levar até o final do nosso caminho.