Liberto que será também (Joel)

Liberto que serás também

Crônica de quinta, Joel Gehlen, 5 de novembro 2019

                Wilson Gelbcke não levou o vasto sorriso para a eternidade. Partiu sem portar esse que foi o passaporte da sua vida, a cada chegada e também nas despedidas. O sorriso foi sempre sua etiqueta. Mesmo nas contrariedades, lá estava ancorado, aquele vasto traço de acolhimento e confiança. Como um solvente que a gente usa para amenizar as dores pastosas. A palavra nem sempre se faz entender, a mão tantas vezes cala o gesto, então, mesmo a véspera de um sorriso abranda as contradições de que somos feitos. Fui demorar meu gesto diante do seu adeus. Não o encontrei. Lá estava a máscara da ausência, o homem que fora, esgotou-o até a última gota para infindar-se, no amor e na escrita.

Duas semanas antes, em igual posição, dentro da mesma capela da alameda lúgubre, que é ao mesmo tempo plataforma de despedida e sala de recepção, fui encontrar o Narciso Batista Souza. Ele portava o seu meio-sorriso, talvez como última deferência ao nome ao qual se substantivou. Desde quando colegas na redação do jornal, nunca o Narciso se deu a larguezas. Compunha-se de um comedimento quase austero, como um penhasco que se sabe eternamente batido por ventos e vagas. Desde logo, pregava na gente uma impressão de rigor, que o meio-sorriso traduzia em enigma. Acolhia a todos, mas sem adornar as arestas. Deixava-nos queimar no fogo das certezas próprias, minados de dúvidas. Uma amorosidade que não se acumpliciava, nem se opunha. A gente se agarrava àquele traço atravessado no rosto, um tanto oblíquo, feito a diagonal no campo das hipóteses. Uma esperança que, por fim, arranjava-se da melhor forma. Deixou pendurado ali, na máscara final, como assinatura de si, a nos lembrar do equilíbrio das probabilidades.

Chega o tempo e as partidas tornam-se recorrentes. É sempre a porosidade das trocas; algo vai, outro tanto vem. O longo abraço impalavrável a nos dizer: agora é contigo. Ao depois, é recolher o olhar deixado longamente sobre o esquife, soltar os dedos a reporem às cegas os botões nas casas do casaco e voltar-se para a “agitação feroz” da vida, com os passos que temos, seguros ou indecisos, porém, um tanto mais libertos, mesmo que tardios.

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