Mais um dia (David)

MAIS UM DIA

 

David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras

 

Seis e meia da tarde. O sino já tocou. Blém-blómmm.

Abro a porta do casebre, tiro o boné, coloco-o pendurado no cabide de madeira. Me espio no espelho enferrujado do guarda-roupa. Sou só fuligem. Tiro o macacão, pego a toalha, entro debaixo do chuveiro. Esfrego o sabão de soda com força e a água suja, quase preta, vai escorrendo em direção do ralo. Olho pelo vitrozinho embaçado. Já escureceu. Me enxugo molemente. Na vizinhança, um rádio esgoela uma canção de amor não-correspondido. Escovo os dentes pra tirar a fuligem incrustada. Penteio o cabelo. Abocanho um pão adormecido, já seco. Calço o tênis estourado.

Mais um dia.

Vou pra frente de casa. Fico olhando quem passa. Um cachorro magro. Uma velha carregando as compras numa sacola xadrês. Um bêbado falante e trôpego. Três moleques jogando bola de meia no meio da rua empoeirada, sob a luz do poste.

Se me cumprimentam, eu respondo. Sobre o casario, a lua minguante, cara recortada.

Com um palito de fósforo, tento tirar pedaço de pão seco dos dentes. Acabo sangrando a gengiva.

Braços doloridos. O facão afiado no eito do canavial. Záp-záp. Pra lá e pra cá. Cegamente. Folhas de cana espáduas afiadas, cortam a pele, deixam marcas.

Quantas facãozadas por dia? Às vezes, eu conto: 1350. O que penso, então? Vazio oco no cérebro. Pensar enlouquece.

O Manito pensava. O patrão não gostava. A usina não gostava. Estava ali pra trabalhar. Não era pra conversar. Cantoria podia? Sim, disse o feitor a contra-gosto, enrolando o grosso bigode.

Dois baianos brigando de facão

Sai fogo quando o aço resbala.

Os namoros de antigamente

Espiava por um buraco na sala.

Manito não queria cantar. Falava do patrão, falava do governo, falava de toda ignorância. Mundo desigual. Olha o que fala. Os campos escutam. Pode amanhecer numa vala com a boca cheia de formigas.

Se quer sombra e água fresca, por que não estudou? Se quer jornal de letras grandes, por que fugiu da escola? Tem que lamber botas e comer carvão das queimadas.

Lua minguante. Míngua tudo. Até as ideias. O homem – miudinho e feroz.

Desço três quarteirões. Vou até o ponto de ônibus. Espio se ela está lá. A minha garota. Minha andorinha. Não está. Mas hoje é quarta-feira. Errei o dia? Angustiado, pergunto a qualquer um. Terça-feira. Arre, o que estou fazendo aqui. Hoje ela não vem.

Volto a passos lentos. A lua sobe no céu nublado. Vai chover.

O Manito sumiu. Ninguém sabe o paradeiro. Foi um dia abafado, suor escorrendo enegrecido. Perguntaram ao feitor: por que o Manito não tinha aparecido? O brutamontes se irritou. Sou, por acaso, pai de todo mundo? Facão zunindo, o aço brilhando, a fuligem grudando no corpo, folhas espáduas cortando, lambendo a pele.

Quem trabalha não tem nada,

Enriquece quem tapeia,

Pobre não ganha demanda,

Rico não vai pra cadeia.

Cala a boca, diz o feitor. Se alegrem por ter trabalho. Ninguém sabe o dia de amanhã. As máquinas estão chegando. Brutas, bonitonas. Se preparem. Uma colheitadeira de cana faz por mil. Quero ver onde vão arrumar emprego…

Agachamos a cabeça. Os facões: záp-záp. Aço rebrilhando na tarde morna. Preciso completar as 1350 facãozadas. Braços adormecidos. Encontro uma cascavel queimada. Só o esqueleto. Mais adiante, outro esqueleto. É de um bezerro?

De repente, a conversa corre rápida entre os boias-frias em forma de alarido. Encontraram o Manito. De borco na vala, depois da mata, a boca entupida de formigas, vazado de balas.

Depois disso, não contei mais as facãozadas.

Paro na frente do casebre. A lua minguante se escondeu nas nuvens. Ninguém na rua. O Manito apodrecendo. Isso não sai da cabeça.

Mais um dia.

 

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