Mas isso dá dinheiro?

OBSERVAVA o pai lavrando a terra. A vida inteira. Envelhecera no cabo da enxada e no arado. Desbravara o vale. Enfrentara onças, cobras, doenças. Entendia a terra. Não perdia tempo em questões filosóficas. O pai era um pé de café. Misturava-se com o cafezal verdejante.

Em seguida, começou a observar os pássaros. Esvoaçavam em bando. Que pássaros seriam? Voavam de um lado para outro ao redor da copada da paineira em flor. O ar do entardecer, para o lado da lagoa, além do pomar, deixava o voo claro e lépido, os pequenos corpos trêmulos e dardejantes, a voar retilíneos e ziguezagueando sob o fundo do céu como se voassem sobre um lençol de espelho d’água tênue e vaporoso.

Voavam. Uma guinada. Uma investida encurvada. Uma ruflada de asas. Sempre em linhas retas e curvas, tecendo e preenchendo o vazio da tarde, girando incansavelmente ao redor da copada florida, com notas longas, estridentes e trinantes. Uma guinada. Uma investida encurvada. E pousavam.

O pai, já envelhecido, barba e cabelos brancos, voltava da roça, enxada às costas. O pai e os pássaros. O pai e a terra. Sim, eles se fundiam. Ambos não precisavam de Estética, Estilística, Filosofia, Latim… Não precisavam de Aristóteles, Platão, Pascal, Kant, Sartre, Isaac Newton, Darwin… Para eles, bastava saber das diferentes épocas e estações, porque isso fazia parte da ordem da vida e essa ordem da vida não precisava de Estética, Gramática, Literatura, Filosofia, Religião etc.  Nem os pássaros nem o pai precisavam de um deus ou de outra coisa, senão a sabência das quatro estações. Por isso que padre Salvino, há anos, costumava frequentar a casa, em longas conversas, sem dissertar sobre religião, santos e devotos. Padre Salvino sabia que, para o pai, bastava a sabência das quatro estações. Não precisava de Machado de Assis, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drumond etc. Ele e a terra, a sabência das quatro estações.

Há dias o pai o chamara e dissera: “Filho, já que você gosta tanto de estudar, você precisa estudar pra ser advogado.” Estava no meio do terreiro e o pai no varandão. “Sabe, do jeito que o mundo vai, é bom ter um doutor na família.” Gabriel estacou no meio do terreiro, junto dos cachorros. Advogado? Um doutor? “A gente tem alguma economia guardada e pode pagar a faculdade” – voltou a dizer o pai, entusiasmado. Goela seca, cuspe arranhando, não sabia o que dizer. “Mas…” Andou de um lado a outro no terreiro, até a bica d’água, lavando o rosto afogueado. O pai cultivava, secretamente, o sonho de ter um “doutor” na família. Mas ele não queria ser advogado. Se aceitasse, seria um frustrado para o resto da vida. Se dissesse o que pretendia, frustraria as aspirações do pai. O dilema. Mas, enfim, nutriu-se de coragem: “Pai, eu não quero ser advogado…” Viu o entusiasmo murchar no rosto enrugado. “O que você quer ser, então?” Com voz baixa e entalada, conseguiu dizer: “Quero ser escritor…” O silêncio entre pai e filho. Só se ouvia o vozerio da família dentro de casa e lá fora, no terreirão de café, os latidos dos cachorros e o alarido das maitacas cortando o azul do céu, talvez em direção ao milharal. “Mas isso dá dinheiro?” – a pergunta fatal. Titubeando, a sua resposta: “Eu não sei, pai. Mas é o que eu quero.” O velho se calou. Gabriel tremia, pesaroso. Não queria frustrar os sonhos do pai, o homem da terra, quem tinha a sabência das quatro estações e conhecia a lei da colheita.

 

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