Matriz Perdida (Joel)

Matriz perdida
Crônica/ JOEL GEHLEN,

– Quando morrer, quero um ataúde grande, em madeira resistente e macia, ao natural, para os amigos ficarem em volta, gravando durante o meu velório.

Estávamos todos em torno da grande mesa, depois da última aula, e o seu dizer atravessou-me o tino. Ele tinha as mãos levemente entintadas e corrigidas com talco neutro para evitar qualquer mancha indesejável. Mas o coração é incorrigível. Estava claramente satisfeito pelo resultado dos três dias de oficina, bebericava um excelente Joaquim, safra 2009, rosé seco, e rondava o nosso falar o acepipe e a “cachaça” da xilogravura, que a todos tornava séquito e artífice.

É uma raridade enternecedora ouvir um grande mestre exceder em sua paixão pela arte. Um ofício que cobra elevado tributo – pago sempre com devoção – contado a fio e aço nos dedos de seus amantes. Ele estava ali, rodeado de aprendizes, cada um com seu matiz, com sem tanto de mundo, habilidade, conhecimento e empenho.

Nem sei se pelo vinho ou por embriaguez artística, todos dávamos o máximo de nós para inscrever aquele instante no epitáfio de nossas eternidades particulares. Na encruzilhada daquela mesa, éramos a pelica entintada a depor a personalidade única e indissociável de nossos destinos. Na mesma mesa que servira para recomendações, conhecer goivas, levar puxões de orelhas, para gravar e imprimir, agora partilhávamos o vinho e o pão, numa singela antecipação pascal, em que todos rodeávamos o mestre André de Miranda, sem qualquer farisaísmo. Acima de tudo, sedimentávamos uma paixão, nova ou antiga, pela arte da gravura, esmerando-se em dizer o que em nós era descoberta e arrebatamento.

Fiquei a pensar no que seria digno de ser gravado naquele esquife imaginário. Mas logo outra ideia se interpôs: a de que o Mestre Miranda levaria consigo as goivas de haste de guarda-chuva e passaria a eternidade a gravar seu leito derradeiro, de dentro para fora. Uma obra infinita, que jamais imprimiria. Depois de acabada, admiraria atentamente a própria perfeição subjugada, e sem encontrar contentamento, recomeçaria a gravar novamente o mesmo lenho, na mais autêntica matriz perdida. Por certo, nem Picasso, em toda sua completude, ousaria conceber tal esplendor, apenas para dois olhos, que há tanto já houveram se ausentado.

COMPARTILHE: