Medalha Dona Francisca – Discurso em nome da família
POR OCASIÃO DA ENTREGA DA MEDALHA DONA FRANCISCA A CARLOS ADAUTO VIEIRA
Joinville, 08 de março de 2019. Autor: Carlos Adauto Virmond Vieira
Excelentíssimo Prefeito Municipal de Joinville, Demais autoridades já nominadas pelo protocolo, Senhoras e Senhores,
O Carlos Adauto Vieira, da certidão de batismo, são muitos.
É o Carlinhos Adauto para os manezinhos da ilha, de sua infância e juventude. É o Dr. Adauto para os clientes da advocacia de mais de 60 anos.
Foi o Adauto para a Stela, e agora o é para a Márcia.
Para nós, os filhos, é simplesmente pai, para os netos, o vô Adauto.
Mas foi também Heliodoro Luiz, depois Charles D’Olenger e finalmente Charlot.
Seus pseudônimos, para ludibriar os censores da ditadura militar e poder continuar a escrever. Pois escrever sempre foi a sua maior paixão.
Mas hoje não quero me ater à figura pública do Dr. Adauto, que fez de sua exuberante erudição uma poderosa arma na defesa de suas convicções, as quais, importante destacar, jamais traiu.
Quero, em nome da família, falar do “pai” Carlos Adauto Vieira.
Ciente de que falar sobre o pai é sempre difícil, quanto mais do próprio. Pois pai é parte, indissociável, de nós.
Falar do pai é quase como falar de si.
Nada há antes do pai. Há muito durante.
E depois, fácil imaginar, restará um enorme vazio.
LIVROS
Impossível dissociar o pai dos livros.
Os tínhamos por toda parte em nossa casa, em uma invasão diária e compulsiva, empilhados, amontoados, revirados, nas prateleiras vergadas da enorme biblioteca, que abrigava o mundo.
E ele os conhecia a todos. Seus amigos íntimos, confidentes.
E ninguém como ele sabe identificar o livro certo para cada pessoa.
Vive presenteando com livros, que influenciam, profundamente, a vida dos que recebem.
Mas nem esse hábito, quase diário, de presentear livros, dava conta de aliviar o peso das bibliotecas, pois ele mantém muitas, em casa, no escritório, na praia, na pousada…
Bastam alguns minutos de conversa e ele já saca da prateleira um livro e entrega a quem acabou de conhecer, que invariavelmente o devora e fica encantado. Jamais esquece.
Através dos livros ele conheceu o mundo, para depois conferir pessoalmente.
Através dos livros ele descortinou o universo para nós, filhos e netos, remanescendo como herança o hábito, quase compulsivo, pela leitura.
CHIMARRÃO
Impossível dissociar o pai do chimarrão diário.
Ele mantém uma rica coleção de cuias, ornadas com bombas de prata e pedras semipreciosas. Uma cuia para cada ocasião, que lhe acompanhavam em todos os lugares, até nas viagens internacionais, quando gentilmente solicitava água quente à aeromoça, e atravessava, mateando, a vastidão dos oceanos.
Não recordo um só dia que o pai não tenha tomado seu chimarrão pela hora do sol nascer, ritual que muitas vezes os filhos, sonolentos, gostavam de acompanhar.
MÁQUINA DE ESCREVER
Impossível dissociar o pai do estridente barulho da máquina de escrever, que antes das seis da manhã já preenchia o silêncio de nossa casa.
Aquele “tec-tec-tec”, inoportuno, por sua regularidade diária, nos servia, de certa forma, de conforto, naquela última horinha de sono. Era o sinal de que o mundo estava em ordem.
PRISÃO PELA DITADURA MILITAR
E aqui abro um parêntese para relembrar que, por um longo período, sua máquina de escrever silenciou. Claro sinal, para nós, de que o mundo, o Brasil, não estava em ordem.
A ditadura militar raptou nosso pai às cinco horas da manhã, deixando minha mãe, Stelinha, uma menina de apenas 25 anos de idade, sozinha, com quatro filhos, eu e meu irmão Marcel ainda bebês.
Impossível dissociar o pai de nossa mãe, Stela Maria Virmond Vieira, uma fortaleza de mulher, que hoje também merece ser homenageada no dia dedicado a elas, representada aqui por sua melhor amiga, nossa querida tia Ivete Appel da Silveira.
Na ausência de meu pai, além dos afazeres domésticos e dos quatro filhos, ela assumiu a administração do escritório de advocacia, apoiada pelos saudosos Seu Abelardo e Dr. Paulo Medeiros.
Em 15 de outubro de 1967, dia do meu aniversário de 2 anos, minha mãe escreveu a seguinte carta para meu pai, que estava arbitrariamente preso pela ditadura, tendo sido, ao final absolvido:
“Meu Querido,
apesar das saudades imensas vamos indo bem, esperando logo a tua volta.
O que nos ajuda muito a vencer este período horrível de nossas vidas é a certeza de tua integridade moral e de que está inocente.
Tens a solidariedade de uma cidade inteira, pois todos que te conhecem, tanto amigos como clientes, estão certos de que não te envolvestes em nenhum movimento subversivo, e que vivias tão só para o teu trabalho e família.
Seu Abelardo está ainda muito abatido com os acontecimentos, mas irá ajudar-me nos serviços do escritório. Todos os advogados da cidade, sem nenhuma exceção, já prestaram solidariedade e ofereceram seus préstimos.
Comprei para o Carlinhos a bicicleta e ele está todo feliz, sem larga-la um minuto. Fedato mandou uma bola de futebol e ele ganhou muitos outros presentes, que adorou. Fala muito no pai Adauto, com aquela sua voz muito grossa.
Simone e Jacquie estão com muitas saudades e esperam que voltes logo. Tere veio passar o domingo conosco. Papai e mamãe estão aqui e mandam beijos e abraços.
Teus pais e irmãos telefonam todos os dias. O Marcel está muito engraçadinho e tem tomado bastante sol.
E tú como estás?
Todos os nossos amigos enviam abraços.
Beijos saudosos de teus filhos e de tua Stelinha.”
BOM COMBATE
Impossível dissociar o pai dos bons combates.
Ariano, nascido em 26 de março de 1933, nunca deixou de defender suas convicções. A expressão medo não constava de seu dicionário.
Compreendeu, ainda muito jovem, a lição de Thomas Hobbes, de que o homem é o lobo do homem, e inspirado em Cícero fez do combate às injustiças e à desigualdade a sua maior missão.
Lutou com intransigência pelos direitos dos trabalhadores. Pela liberdade de expressão. Pela preservação do meio ambiente. Pelas prerrogativas dos advogados. Pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Pelo Estado Democrático de Direito.
Lutou e luta, sobretudo, pela materialização do acesso universal à cultura, ciente de que somente dela pode germinar uma sociedade mais justa e perfeita.
MAÇONARIA
Impossível dissociar o pai da maçonaria.
Ele fez do trabalho na pedra bruta sua missão maior no campo espiritual e filosófico. Tornou-se um líder no combate ao despotismo, à ignorância, aos preconceitos e aos erros, conduzindo seus irmãos de ordem na glorificação da verdade e da justiça.
Com o fim de promover o bem-estar da pátria e da humanidade, foi incansável em levantar templos à virtude e cavar masmorras aos vícios.
AMIZADE
É impossível dissociar o pai da amizade e do companheirismo.
Trata a todos, sejam funcionários, assessores ou discípulos, como amigos Trazendo sempre na algibeira uma palavra amiga, um incentivo, um conselho.
PAI PRESENTE
Ele foi um pai sempre muito presente:
Que nos encantava com as histórias do dengoso e do fendegoso. Que nos trazia todos os dias revistas de histórias em quadrinhos. Que nos comprava enciclopédias em diferentes línguas.
Que assinava revistas em nossos nomes, para nos incentivar a estudar música, artes, literatura. Que nos mantinha em contato sempre muito próximo à natureza.
Que nos fazia churrascos deliciosos.
Que nos levava para tomar banho de rio, de mar, subir em árvores, nadar sempre muito longe. Que nos motivava sempre a superar o medo e a mergulhar do trampolim mais alto.
Mas, sobretudo, ele é o pai que nos ensinou a ser nós mesmos, sempre.
E que com nosso esforço tudo podemos alcançar. Não há limites para nossas realizações. E, por fim, que a vida é uma dádiva divina e o mundo o nosso quintal.
O quintal mágico de Charlot.
Por isso tudo e por muito mais, que as folhas não comportam…
OBRIGADO PAI!
Dos teus filhos, Simone, Jaqueline, Marcel, Jovenil, Carlão, Camila e Carolina.