Meditações de abril (Joel)
Meditações de abril
Joel Gehlen, crônicas de Maha Dharma, 1/04/2020
A última noite de março se dissolve. O céu está completamente limpo, vai ganhando uma palidez que esmaece o contato com as estrelas. A solidão fica maior, ganha o arcabouço da abóbada. A penumbra não quer amanhecer nos braços de abril. Correm-me odes pelas vias que o vento vinca na testa da madrugada, mas não ouso escrever. O imperscrutável finca seus ferrões em meus sentidos. A brisa é doce, uma infante antes da cotovia. Distingo calmaria e tempestade sem poder optar. No zênite, brilham estrelas que mal decifro. Não importa seus nomes. São como aqueles raros amigos que vamos poder enxergar do fundo de qualquer encrenca que a gente possa se meter. Lá pelos recônditos da encosta ainda pia triste o urutao. Logo o noturno agouro será substituído pela passarada que celebra a manhã. Então será abril, o “mais triste dos meses”.
Nesse ponto, o planeta Mercúrio está conjunto a Saturno e pressagia em cochichos que não decifro. O quadrante ainda escuro de céu vai sendo empurrado pelo flanco da montanha. A urgente notícia do outono, é que o Sol acenderá alguns graus mais a nordeste. O ambiente que tateia a pele é frio, meio morno, quase uma febre. O cão Amigolindo senta-se ao lado, e debruça a fuça entre as patas. Com olhar tristonho palmilha o pequeno vale onde mais tardará a ser abril. Ali, março levantou paliçadas. Resistirá até cair a sua última sombra! O amplo inefável se interna diante dos olhos do cão. E quatro patas caladas ampliam a solidão desse momento até os confins do peito.
As sementes de março estão todas enterradas e sorvem pela memória das futuras raízes a última gota que março lhes dá a beber. Estão desamarrando sem pressa os pesados fardos da sua genética. Hão de pisar o solo de abril em calma, com pés descalços, indiferentes às águas de março ou às ameaças de abril. Então, no indeciso instante em que o fiel da balança encontra o seu centro entre claro e escuro, uma grande borboleta descola-se da penumbra, trazendo no peito o plúmbeo da noite; e nas costas, o alarido azul mais gritante que se possa conceber! Um suspiro convoca os olhos, os lábios, o cenho, e põe o horizonte em suspenso. É abril.