Meu reino por um cavalo! (Paulo Roberto da Silva)

 

Meu Reino por um Cavalo!

Paulo Roberto da Silva

 

Os animais… o que seria de nós sem eles? Alguns nos são particularmente familiares, parte das nossas próprias famílias, uma extensão de nós mesmos. Outros, mais selvagens ou ariscos, nem por isso (ou, talvez, por esse motivo) são menos impressionantes!

Voltando no tempo, consigo rememorar uma lista sem fim de animais que fizeram parte tanto da minha vida como dos que vieram antes de mim, uma lista que inclui cães, gatos, aves e uma miríade de outros animais domésticos, estendendo-se a episódios improváveis (ou não!) com criaturas como onças, leões, serpentes, jacarés, focas, golfinhos, baleias, passando pelo encontro da nossa mãe com lhamas, do meu irmão com um tigre-de-bengala e chegando ao dia em que tive o privilégio de andar em um elefante indiano, lá pelos meus 8 ou 9 anos de idade (ainda assim depois de muita insistência da nossa mãe, que parecia nunca ter medo de nada).

Isso sem falar nos troféus de caça do meu bisavô materno, fruto das suas investidas cinegéticas pelas matas da região, sempre acompanhado dos seus 2 bons cães-de-caça, e que inundava as paredes da sua casa com chifres e aves empalhadas. Uma prática certamente menos exótica do que a do meu bisavô paterno, que colecionava… olhos de peixes, de diferentes espécies e tamanhos, guardados em uma infinidade de potes de vidro colocados lado a lado, em sucessivas prateleiras, pois acreditava piamente nas propriedades curativas ou medicinais deles para os mais diversos males!

Hoje, contudo, quero me ater só a um desses animais, os cavalos, que estão entre os mais frequentemente recordados (e adorados) por nós, embora que nem sempre associados a boas lembranças. A frase célebre atribuída por Shakespeare ao rei inglês Ricardo III na batalha em que ele perdeu o trono e a vida, guardadas as devidas proporções, talvez nos defina: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”.

Nessa esteira, inicialmente recordo de meu tetravô Carl Monich, que governou Joinville em 1877 como seu 5° prefeito e que, ao longo da vida, acumulou uma coleção significativa desses animais, boa parte empregando na sua frota de diligências que transportava passageiros e mala postal de Joinville a outras cidades e localidades próximas, um serviço que esse lado da família manteve por cerca de 30 anos e que rendeu muitas histórias. Na subida da Serra Dona Francisca, cujo nome homenageia a Princesa de Joinville, aqueles pesados coches precisavam, não raras vezes, ser conduzidos por 4 ou até 6 animais, que eram trocados ou postos para descansar a cada 20 km, todos com guizos ao pescoço para anunciar sua chegada. Uma das passagens mais recordadas nos remete à primeira diligência que realizou a viagem direta de Curitiba a Joinville, conduzida por Friedrich Holz, um dos cocheiros do meu tetravô: ele levou inacreditáveis 7 dias e meio para cumprir esse trajeto, o que foi considerado pela imprensa da época um… tempo recorde!

Será por acaso que, bastante próximo à casa do prefeito Monich (como o tratamos, até mesmo para distingui-lo de seu filho e de seu neto homônimos), situada na rua XV de Novembro, existiu o hipódromo ou a pista de corridas de cavalos de Joinville? Ocupando o trecho inicial da atual rua Aquidaban (então conhecida como “Rennbahnstrasse” ou “Rua do Hipódromo”), o prolongamento dessa via se abriu exatamente sobre a propriedade dele. No mínimo, uma feliz coincidência, que atraía competidores e apreciadores dos quatro cantos da cidade.

Enfim, quando meu tetravô faleceu, em 1906, dentre os bens que deixou estava lá relacionada sua legião de cavalos, que foram generosamente distribuídos entre seus diversos filhos e filhas, com exceção de minha trisavó Antoinette Monich que, ao contrário do restante de nós, nunca fora apegada a eles, preferindo receber sua parte na herança exclusivamente em terras.

Seu marido, contudo, meu trisavô Wilhelm Pape, era um apaixonado por seus cavalos, e eles percebiam isso e correspondiam, tanto que, quando ele estava à morte, seus cavalos permaneceram o tempo todo do lado de fora da janela do seu quarto, como que velando por ele, e de lá só saíram quando ele deu seu último suspiro. Por uma infeliz ironia do destino, meu trisavô Pape faleceu por complicações resultantes de um terrível acidente com a carruagem em que se encontrava…

Na geração seguinte, meu tio-bisavô Julius Stricker nos legou outra trágica história que vem sendo transmitida geração a geração, quando, em 1910, saiu conduzindo sua carroça acompanhado de alguns dos seus pequenos filhos para fazer umas rápidas compras. Ao entrar no local pretendido, deixou as crianças a bordo e, súbito, um homem embriagado surgiu derrubando objetos ao chão num estabelecimento próximo, assustando os cavalos do nosso tio que saíram em disparada! Alertado pelo alvoroço e apavorado com a cena, pois seus filhos estavam no veículo, correu para tentar parar os animais, o que conseguiu somente após ser fatalmente pisoteado por eles…

Na geração dos meus avós, uma cena sempre lembrada nos remete às visitas do irmão mais novo da nossa avó Jenny Krüger que, na década de 1940, a cada vez que se dirigia do Rio de Janeiro, onde morava, para visitar sua irmã aqui em Joinville, antes parava no quartel local do Exército, militar que era, para requisitar para si o fornecimento de algum cavalo para percorrer a cidade: o Exército, então, disponibilizava-lhe sempre 2 animais, um branco e outro mais escuro, quase negro. E lá vinha ele, regiamente fardado, em visita aos familiares que lhe eram mais próximos, o que incluía desde sua irmã (nossa avó) até sua tia-avó Hedwig Monich-Priewe. Quando chegava, já advertia os sobrinhos (nossa mãe e seus irmãos) de que de forma alguma deveriam alimentar o animal, e completava: “Vocês podem dar a ele somente isso aqui!” (e sacava do bolso um punhado de torrões de açúcar, para delírio das crianças).

A cena desse querido tio, Mauro Bolívar, ficou gravada fortemente na memória da nossa mãe, que sempre recordava dessas tão aguardadas visitas. Aliado ao amor pelos cavalos que ela sempre teve, na década seguinte, quando frequentou aulas de desenho e pintura com uma professora particular na rua Orestes Guimarães, em Joinville, um dos vários trabalhos que nossa mãe nos deixou foi o de um belo cavalo pastando tranquilamente à relva. E isso me fez lembrar de outro animal, o “Alazão”, que nosso tio-avô Paul Seidel deu de presente a sua filha Maud para suas aulas de montaria na São Paulo daquela mesma década de 50: um cavalo muito peculiar, com uma estrela branca sobre a testa e, na base de 3 das patas, uma pelagem igualmente branca que fazia parecer estar ele usando meias!

Por fim, chegou a minha vez. Nossos pais com frequência nos levavam a um local chamado “Paraíso dos Pôneis”, na cidade de Gaspar, a caminho de Blumenau. Naquele lugar fartamente arborizado, no início dos anos 70, havia vários chalés onde as famílias poderiam se hospedar, além de amplas piscinas e de uma extensa construção térrea onde eram servidas as refeições aos hóspedes. Mas a grande atração eram mesmo os cavalos e pôneis, e era por eles que íamos com tanta frequência até lá, pois em Joinville não havia nada parecido na época.

Logo na entrada, junto à rodovia, uma gigantesca estátua de um cavalo branco sobre um pedestal, obra de um artista paulista, parecendo uma versão do “Cavalo de Tróia”, alertava de que o local procurado ficava ali.

Numa das primeiras visitas ao lugar, meu pequeno irmão e eu fomos entregues aos cuidados de um instrutor para nos iniciar na arte da montaria, sempre sob o olhar atento dos nossos pais, que a tudo acompanhavam apoiados no cercado que rodeava o espaço. Nas vezes anteriores eu sempre recusei, imaginando tudo o que de errado poderia acontecer, mas a paciência dos meus pais chegou ao limite e, naquele dia, não houve como escapar. Meu irmãozinho foi o primeiro e, dada sua pouca idade, foi colocado sobre um pônei, que conduziu com a maior tranquilidade. “Ahh… é fácil!”, pensei eu… Quando chegou a minha vez, contudo, fui apresentado a um cavalo que me pareceu monstruoso, apesar da bela pelagem marrom brilhante. Minha primeira reação foi perguntar ao instrutor (entre indignado e apavorado) porque motivo meu irmão estava com um pônei e eu fui encaminhado para um cavalo das dimensões de um mamute? “Por ele ser muito pequeno ainda”, concluiu ele. Sem outra alternativa, montei o animal e, olhando para o chão, a distância parecia ter dobrado de tamanho! Fiquei paralisado mas, de maneira alguma iria deixar que alguém percebesse, ainda mais vendo com que tranquilidade meu irmão comandava aquele inofensivo (e agora irritante) pônei. O cavalo pressentiu que eu não era um garoto muito amistoso e reagiu, mas, depois de algum período percorrendo o “picadeiro”, que parecia não ter fim, fui finalmente autorizado a desmontar. Tempos depois, no mesmo “Paraíso dos Pôneis”, por acaso meus pais encontraram um jovem casal que conheciam aqui de Joinville, os drs. Emir e Cleusa Coral Ghanem, que lá estavam com seus dois filhos pequenos para também fazê-los cavalgar, e qual não foi minha surpresa quando percebi que, assim como acontecera com meu irmão, aquelas crianças dominavam o animal com a maior tranquilidade e boa vontade. O problema, portanto, estava em mim!…

Vários anos depois, já no meu escritório, a certa época meu antigo sócio sugeriu que, às sextas-feiras à tarde, nós não mais déssemos expediente, reservando essas tardes para confraternizar! E um dos locais onde mais passamos a ir era em uma Fazenda de propriedade da família Schroeder, onde alugavam cavalos para montaria. Logo de início, foi-me oferecido um cavalo que, por causa de sua pelagem amarelada, tinha o nome de “Canário”. Ao montar, instintivamente olhei para baixo e me lembrei daquela primeira vez, na infância, em que o chão parecia ter quilômetros de distância de mim: agora, contudo, o solo estava logo ali, tão  perto! Uma das vantagens de ter crescido!

O que não me avisaram, no entanto, é que aquele simpático animal era usado para reunir animais dispersos, pois ele desenvolvia uma velocidade muito superior a dos demais! Meu sócio e eu saímos para percorrer as extensões da Fazenda e, em dado momento, ele sugeriu : “Vamos apostar uma corrida?”. Eu concordei… que mal poderia haver? A meta era ver quem chegaria primeiro à cavalariça, e meu sócio saiu em disparada. Quando mal começou a corrida, percebi que eu não conduzia mais o “Canário”: ele se conduzia por si só e não obedecia a nenhum comando meu! Resignado, deitei minha cabeça no mesmo nível da cabeça do animal, para diminuir a resistência ao vento, e passei a instigá-lo mais ainda: o foco agora era ultrapassar meu sócio! E o “Canário” não decepcionou! A ultrapassagem foi na velocidade de um raio e chegamos ao destino com folga, para espanto do meu sócio que ainda teve tempo de me perguntar: “O que foi isso?!” Minhas mãos estavam em frangalhos, e só então o funcionário do lugar, pedindo desculpas, explicou que aquele animal veloz tinha a função de reunir os demais, mas que nas próximas vezes ele me daria um animal mais calmo. Olhei para o cavalo, que me olhou em resposta, e concluí: “Não quero outro! Quero esse aqui!”. E o “Canário”, que talvez nem viva mais, tornou-se meu parceiro de várias outras cavalgadas, e até de escaladas, mas, doravante, sempre com luvas de montaria, do contrário eu nem estaria mais digitando!

Enfim, muito mais poderia ser dito mas, como ninguém lê textos longos e esse já extrapolou todos os limites da paciência, termino por aqui. Só um adendo: certa vez, folheando um livreto, eu me deparei com um trecho que falava sobre o “horóscopo chinês” e, qual não foi minha surpresa ao descobrir que meu signo é o… cavalo!

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