Minha forma de expressão
Eu era bem pequena, tão pequena que nem lembro quantos anos tinha. Talvez cinco ou seis, sei lá. Já sabia ler, com certeza. Quando entrei no jardim de infância, aos cinco anos, as freiras da escola, que já haviam dado aulas para a minha mãe e a minha tia, logo perceberam que eu estava no lugar errado e me “pularam” de série – fui direto para a alfabetização, terminar o processo que ninguém até hoje sabe bem como começou.
Enfim, deve ter sido por essa época que dei para minha mãe um pedacinho de papel arrancado de algum caderno, onde podia-se ler “A fora-fora”. Era algo entre uma pequena crônica e um poema, que contava a história de alguém que trabalhava muito, que tinha muitos afazeres, que estava sempre fora, que se desdobrava para dar conta de tudo.
Era a “fora-fora”. Fiz para a minha mãe, professora, que estava sempre às voltas com seus alunos e livros, equilibrando no dia a dia – como nós hoje e tantas outras mães e pais que conhecemos – a profissão, a vida doméstica, o cuidado com quem amamos.
Deve ter sido ali, diante daquele pedacinho de papel, que me dei conta de que há coisas que eu não sabia falar, mas que conseguia escrever. Desde então, a escrita tem sido a minha principal forma de expressão.
Falar nem sempre é fácil. A gente engasga, tosse, as palavras somem, os sentimentos atrapalham tudo. A gente mete os pés pelas mãos, se enrola, às vezes diz até o que não devia – ou devia, mas não podia.
Mas escrever, não. Na escrita, os pensamentos fluem de forma concatenada, organizada, pronta. Escorrem pelos dedos e caem no papel (tá, eu sei, hoje em dia é no computador, mas a sensação é a mesma) já conversando com o leitor e prendendo a atenção dele.
Lembro que quando era repórter do AN Cidade, o suplemento local do jornal ANotícia (SC), chegava da rua com a cabeça parecendo um turbilhão, com as ideias alimentadas pelas muitas coisas que tinha visto, perguntado, apurado por aí. O chefe de redação, então, me perguntava o que eu tinha trazido. Claro, ele precisava pensar na pauta, hierarquizar a informação, saber com o que podia contar para a edição do dia seguinte. E eu, com essa cabeça que só se organiza com uma caneta ou um teclado, falava para ele: “me deixe escrever”. Pegava a minha caneca de café e escrevia. Rápido, como faço até hoje.
Geralmente de uma vez só. E quando ele voltava para saber, afinal, o que eu tinha feito durante todo o tempo em que estive fora, a matéria já estava pronta, com título, lead e ponto final. Muito mais simples.
Ao longo da infância e da adolescência a escrita era essencialmente ficcional. Alimentava-me com os livros da biblioteca (lembram quando a gente pegava livros na biblioteca?) e podia me jogar no sofá a tarde toda sem pena de ver o tempo passar – afinal, eu tinha tanto tempo pela frente que nem pensava nisso.
Dessa época, talvez o mais marcante e que de certa forma impactou a vida até hoje foi a obra de Érico Veríssimo, com sua narrativa clara e fluida, capaz de entrelaçar pessoas e lugares em um universo que, no fim, era um só.
E escrevia, escrevia, escrevia. Poemas, crônicas, redações variadas que muitas vezes só serviam para eu tentar entender o mundo a minha volta. Diante disso, na hora de escolher uma profissão, sabia bem que a escrita deveria ser o ponto central dela.
A prática jornalística, de certa forma, me afastou da ficção por uns bons tempos. Escrevia o dia todo, todo dia. Encontrava histórias e pessoas reais tão ricas e surpreendentes que achava que nenhuma personagem ficcional poderia se equiparar a elas.
Histórias de vidas, de cidades, de fatos inesperados que quebravam a rotina do dia a dia. Do passado e do presente. Desenvolvi um olhar atento (porém generoso) para isso, que me rendeu a percepção de que cada um traz em si uma boa história, que merece ser contada.
Há algum tempo, comecei a fazer o caminho de volta. De volta para onde, nem sei bem, confesso. Talvez de volta para aquela menina de cinco, seis anos, que ousava mirar a realidade a sua volta e recriá-la como ficção para tentar entendê-la, processá-la do seu jeito. Aos poucos estou me permitindo (a duras penas) me apropriar das histórias que encontro pelo caminho – tantas, tantas – e reinventá-las na forma de crônicas e talvez até contos.
E este momento, que deveria ser o parágrafo final desse texto sobre como comecei a escrever, consolida – por escrito, bem entendido – a descoberta de que estou recomeçando a brincar com as palavras.