Móin-Móin na beira do rio

A história que eu vou contar tem magia, tem sonho e tem destino. Aconteceu há muito tempo, quando migravam para o norte de Santa Catarina trabalhadores de todo o país. Em uma terra inabitada, onde hoje é Jaraguá do Sul, uma história repleta de magia aconteceu, ninguém percebeu, afinal, estavam todos preocupados em fazer seus trabalhos e voltar para casa. Tudo começou ao lado de uma árvore frondosa, à beira de um rio. Vamos dar uma olhada no que se passa. Veja só, dois homens conversam. Um deles é coronel, o outro é carpinteiro. Ouçamos o que dizem:

– Obrigado pelo serviço, Coronel. Tava precisado.

Jourdan sorri e dá dois tapinhas no ombro de Toninho:

– Não me agradeça. Vamos que a gente tem muito o que fazer.

Os dois seguem entre os rios Itapocu e Jaraguá com os instrumentos em suas bolsas para começarem a demarcar a terra da princesa. Outros homens chegam e cada centímetro daquele chão vai recebendo bênção e destino.

Isso foi o começo, nem dá pra dizer que tem uma história aí, mas vejamos o que acontece semanas depois, quando o trabalho está chegando ao fim:  Toninho, que veio do Nordeste, anda acabrunhado. Se é saudade ou cansaço, não dá pra dizer, foi ficando amuado, amuado, até que os homens perceberam. Alguns se aproximam dele e só ouvem: “está tudo bem, está tudo bem”.

Jourdan também percebe a apatia de seu trabalhador, aproxima-se e tenta tirar dele alguma informação. O trabalho não terminou ainda e ele precisa de homens bem dispostos. Toninho olha para o coronel, depois para o rio, atira uma pedra e fala:

– Eu tive um sonho, coronel. Um boneco falou comigo.

– Ora! Toninho! Que raio de sonho é esse?

– Não sei. Mas parecia verdade.

– Não deixe um sonho te atormentar, homem! Precisamos de você para terminar logo esse trabalho.

– Eu sei, coronel. Eu sei.

– Então. Esqueça desse boneco. Bora trabalhar!

– Ele canta.

– O quê?

– O boneco. Ele canta.

– Canta o quê?

– Tri-tra-trullala, der Kasper ist wieder da!

Ao ouvir a cantoria de Toninho em alemão, o coronel vê que há mesmo motivo para se preocupar. Pede ao moço que vá descansar, o sol deve estar derretendo os miolos do coitado.

Anoiteceu. O boneco visita o sonho de Toninho outra vez e canta feliz “tri-tra-trullala, der Kasper ist wieder da!”

– O que você está cantando? – questiona Toninho. Nos sonhos, até o absurdo parece normal.

– Uma canção.

– Que raio de canção que me atormenta!

– Desculpe. Eu gosto dela.

– O que ela quer dizer?

– Tri-tra-trullala, o Kasper chegou novamente.

– Você se chama Kasper?

– Sim

– E o que você quer comigo?

–Você é carpinteiro, não é?

– Sou

– Me faça.

– O quê?

– Me faça.

Toninho entende o que o boneco quer e, por medo ou imaginação, resolve talhar um boneco idêntico. Trabalha a noite inteira até terminar. Quando amanhece vai até os homens e mostra-lhes. Os homens acham que ele está louco.

– Miolo derreteu, diz um. Outro pega o boneco nas mãos e dá-lhe vida improvisando falas com voz miúda e chata:

– Olá, eu sou Kasper, vim do sonho do Toninho para dizer a vocês que acabem logo com esse trabalho, porque a princesa tá impaciente e o sol tá queimando o miolo de muita gente.

Os homens riem, Toninho não. Toma de volta o boneco. É o último dia de trabalho na terra da princesa e o nordestino quer voltar logo à sua terra.

– Mais uma noite e essa doidera acaba – Pensa o homem.

E ele tem razão, é só mais uma noite, mas ele vai descobrir que é, de novo, noite de sonhar com Kasper.

– Toninho, me proteja enquanto Móin-Móin não vem. Me proteja, Toninho.

O homem quer que aquilo acabe logo. Vira-se na cama, rola de um lado para outro e tenta tirar o boneco da cabeça. Não consegue. Levanta-se, pega Kasper, vai até o arvoredo e lança-o ao vento. O boneco voa e cai no solo, só e abandonado. Pela manhã, Toninho é um dos primeiros a partir.

* * *

Passam 80 anos.

Móin-Móin está na cidade. Tem diversos bonecos que usa para contar histórias. Um dia, ao passar pela beira do rio Itapocu, avista algo se mexer. Pensando ser um bicho, ela se aproxima com cuidado. Vê, sob folhas caídas, Kasper. Limpa o barro e mal pode acreditar que encontrou um boneco ali, em lugar tão inesperado.

– De onde você veio, seu boneco simpático? – com movimentos hábeis, faz Kasper falar:

– Estava esperando por você, Móin-Móin. Ainda bem que chegou.

Móin-Móin ri, limpa um pouco mais o barro do boneco e parte em direção à sua casa. No caminho encontra um dos meninos da escola e apresenta o boneco para ele. O menino olha bem e comenta:

– É o Kasper.

– É seu? – pergunta Móin-Móin.

– Não.

– Como você sabe o nome dele?

– Não sei. Só sei. Que bom que a senhora o encontrou, não é?

– Sim. Estou feliz por isso.

– Ele também está feliz por ter encontrado a senhora.

A professora se despede e Toninho fica olhando para o rio. Parece que já esteve ali, mas não lembra direito. Parece já ter estado com Kasper, mas não lembra direito. Parece ter vivido alguma magia, mas não lembra direito. Deve ser apenas impressão.

 

(Móin-Móin era o apelido de Margarethe Schlünzen, que durante as décadas de 1950 e 1960 apresentou-se com suas marionetes em escolas de Jaraguá do Sul)

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