Não esperem nada de mim (Lufiego)
NÃO ESPEREM NADA DE MIM
I
Não esperem de mim nada mais que palavras
Meus limites são os vazios dessa folha de papel
E os ácidos do meu estômago me tornam irascível
Não esperem que eu abra mão de mim para imolar o ego ao coletivo
Não esperem que eu enfrente a dor sem externar profundo descontentamento
Esperem sim, que eu grite de dor, pois não consigo sufocar esse ímpeto
Esperem também que a saliva acumule branca espuma nos cantos da boca
E que o sangue quente jorre pelas veias abertas junto a plangentes gemidos
Não esperem de mim mais do que símbolos
Os símbolos são enciclopédias com conteúdo infinito
Não esperem que eu retire a venda dos teus olhos cerrados
Apenas propalo que as cortinas poderão se abrir facilmente
Não esperem que surja algum paladino da justiça
A justiça é só uma visão inerente a um ponto de vista
Um dia seremos todos injustiçados em nome da justiça
Não se obsedem com o mal, porque o bem é mesmo fugaz
Não temam a doença, porque é a condição natural da vida
Temam o desperdício com subterfúgios inconsequentes
Enquanto tiverem saúde e os dias forem ensolarados
E quando vierem as tempestades violentas, não temam
Porque fazem parte dessa perigosa realidade física
E, se alguns morrerem, levados pelo louco vento
Não chorem pelos que se perderem no caminho
Porque bem cedo os seguiremos ao além
Pois, na linha do espaço-tempo, que é tão grande
A experiência no planeta Terra é só um segundo
Todos passarão tão celeremente, com suas dores
Seus clamores, temores, gemidos e alegrias
Exceto um poeta
Que é passarinho
E não passará
II
Não esperem que eu deixe de ouvir voluptuosas melodias
Porque o choro das crianças famintas reverbera pelo mundo
Ou porque o clamor dos desvalidos é demasiado ensurdecedor
Esperem sim, que eu me comova diante do televisor
Bem alimentado e confortavelmente protegido do frio
Nada obstante, não esperem que minha mão se levante
Não esperem que eu seja hostil com quem quer que seja
Sou apenas o motivo de desprezo dos engajados nas causas impossíveis
Sou apenas o homem que consome o que o pior do homem produziu
Vivo aprisionado tendo como grades os limites da rua, das calçadas
Vivo escondido sempre espiando o movimento dos transeuntes
Que se esgueiram assustadiços pelos espaços urbanos sem luz
Vivo apenas de planos, de sonhos distantes, de distopias
Enclausurado na masmorra que ergui em torno de mim
Confissão com a qual assustado me aproximo do fim.