Não me querem

(Capítulo 35 do romance “A GUERRA DE JACQUES” – Milton Maciel, IDEL, 2017)

 

Bruxelas, 1945 – Os dias que se seguiram à recusa do seu pedido de cidadania belga foram os mais negros da vida de Jacques Miedzinski até então. Nem mesmo quando ele se vira encarcerado em um trem, a caminho da escravidão na Alemanha, havia sentido o que sentia agora. Seu otimismo desmedido nunca lhe deixara descrer do sucesso em qualquer situação em que se visse. E o que acontecia em seguida sempre servia para reforçar esse otimismo.

Prisioneiro no trem dos belgas, conseguira passar para o trem dos franceses na Holanda. Junto a estes, viu-se de repente na posição de intérprete multi-idiomas. Como tal, tivera uma condição muito mais favorável na Krupp e lá havia encontrado um gentleman como o Capitão Parucker, da Wehrmacht, que o havia colocado numa posição de importância e lhe havia dispensado um tratamento mais do que digno. Quando a coisa poderia ter piorado, eis que o possível carrasco se torna seu amigo e confidente: o Sargento Dieter Maluco revela-se o afável padeiro Dieter Alfons Dumke, que morre no dia mesmo em que vai visitá-lo no hospital, onde a crise de apendicite o havia precipitado. Bombardeado o hospital, surge a invencível bactéria e a morte passa a rondá-lo, sinistra, vezes sem conta.

Até a certeza de uma morte iminente foi o que o libertou da escravidão e o levou de volta a Bruxelas, para morrer. Não, não para morrer, mas para viver, graças à maravilhosa máquina dos norte-americanos! Para ficar curado, para casar com sua Loulou adorada, para ser dono do Bistrot des Amis, para prosperar apesar da própria guerra recém-terminada. Ah, sempre o que parecia ser a mais negra das desgraças, a mais terrível das ameaças, acabava se convertendo no ponto de partida para mais uma coisa boa em sua vida.

Mas agora, com aquela recusa inesperada e inimaginável, todo o seu mundo havia desandado. RECUSADO! Recusado! O fatídico carimbo cortando de um golpe só sua certeza e sua felicidade. Nunca, em momento algum, passara por sua cabeça, durante os cinco longos meses de espera, que a resposta final pudesse ser aquela negativa. Era tudo tão direto, tudo tão simples, tudo tão corriqueiro e já concedido a tantas centenas de estrangeiros, de estrangeiros de verdade, não um pseudoestrangeiro como ele, que só tinha vivido 3 meses em seu país de origem.

Mas a recusa fora cruel, mais ainda porque era impossível de ser imaginada. Havia subido as escadas daquela repartição com o coração aos pulos, exultante, mal conseguindo conter sua alegria explosiva, cumprimentando efusivamente o homenzinho de óculos, que o atendeu com total frieza e indiferença. Pegou o recibo de entrega de documentos da mão de Jacques, foi ao fichário, conferiu alguma coisa e pegou um carimbo enorme. O coração de Jacques disparou: Sou Belga!

Mas o homenzinho devolveu-lhe o mesmo papel e o carimbo havia marcado ali, com escuras letras garrafais: RECUSADO. Enquanto Jacques tentava se refazer da tontura que o acometeu no primeiro instante de choque, o homenzinho falou:

– O senhor não conseguiu provar seu nascimento na Polônia. Nossos registros dizem que o cartório da cidade de Prdzeborg, onde o senhor afirma ter nascido, foi destruído, junto com praticamente toda a cidade, pelos bombardeios dos alemães em 1939. Então, lamentavelmente, o senhor nunca conseguirá provar sua origem. Logo, pelo regulamento, eu não posso lhe conceder cidadania belga. Nem agora, nem nunca. Passar bem.

E, encerrado o assunto, retirou-se para a sala ao lado. Jacques saiu tropeçando sobre seus próprios passos, andando escada abaixo sem saber muito bem o que fazia e, quando deu por si, estava na calçada, onde Loulou e seus amigos esperavam por ele para começarem a grande comemoração combinada. Só que desta vez não havia nada a comemorar.

Nem agora, nem nunca, o funcionário fora taxativo.  Ele, Jacques Miedzinski, jamais seria cidadão belga! E, apesar de se saber belga, apesar de se sentir belga, apesar de amar ser belga, seria para sempre o mesmo ‘polaco imundo’.

Durante os três dias seguintes, Jacques mais pareceu um autômato. Levantava-se no horário de sempre, comia como sempre, conversava com todos como sempre. Trabalhava não só da mesma forma de sempre: trabalhava mais. E ria e brincava com os clientes também, como se nada tivesse acontecido de diferente com ele.

Mas Loulou sabia que não era assim. Via seu marido destruído por dentro, via que, quando ele brincava e ria com os clientes, seus olhos não riam. Faltava-lhes aquela luz de vida, de alegria de viver, que era sua marca registrada. Percebia o quanto Jacques era um bom profissional, a ponto de não deixar que sua dor extravasasse sobre seu negócio e seus fregueses. E sentia – com aquela lógica superior que transcende o mero raciocínio, porque vem da intuição de uma mulher – que, acima de tudo, Jacques não queria que ela sofresse por causa dele.

Procurava mostrar-se normal, como se o sofrimento não o estivesse esmagando, para que ela o sentisse forte e confiável como sempre. Ah, mon pauvre amour! Certo, querido, eu também vou continuar fingindo como você. Fingindo que não vejo, que não sinto a sua dor, fingindo que sou uma alienada, uma mulher insensível, fingindo para que você possa se sentir menos arrasado por minha causa também, para que você continue acreditando que está me protegendo como sempre. Meu pobre amor…

Assim todos seguiram fingindo, inclusive os amigos, aos quais Loulou pedira encarecidamente que não tocassem mais no assunto com Jacques, o maior de todos os fingidores.

Passaram, escoaram-se lentamente, escorreram pesados e pegajosos pelas paredes subitamente escurecidas do Des Amis aqueles três dias fatídicos, três dias de plena e excruciante agonia para o belga recusado. Loulou sabia que aquela situação não poderia se manter indefinidamente. Em algum momento Jacques teria que explodir, como um vulcão que, depois de muito tempo suportando pressões irresistíveis, subitamente irrompe em lava, destruindo tudo a seu redor. O Padrinho manifestava a cada dia mais preocupação com a saúde de seu afilhado.

– Mas ele precisa falar disso, precisa botar para fora. Nenhum coração humano pode aguentar tanta violência internamente.

Porém Loulou insistia, com um sorriso enigmático:

– Não, padrinho. Não podemos interferir nisso. Deixe que Jacques mesmo encontre o seu caminho. Não sei lhe dizer por que, mas eu sinto isso. Sinto que tem que ser desse jeito. Sei que vai ser assim. Vamos esperar um pouco mais. E, enquanto isso, continuamos fazendo de conta que está tudo normal. É como Jacques quer, é como ele precisa.

 

Ao cabo do terceiro dia, às três da tarde daquele outono, a luz no grande salão do Bistrot des Amis pareceu forte demais para Jacques, ofuscando seus olhos e fazendo-lhe doer ainda mais a cabeça. Sobravam-lhe quase 3 horas até abrir as portas do negócio, por isso preferiu descer para a adega, no subterrâneo.

Os sapatos soaram pesados na escada de madeira, o odor de cerveja e serragem inundaram-lhe o nariz e a luz mortiça consolou sua vista dolorida. Deu alguns passos irresolutos e, de repente, jogou-se sentado sobre a serragem no chão, em um vão entre barris de chope. Fechou os olhos, cobriu a fronte com as duas mãos e deixou-se enfim desabar.

Estava só, poderia chorar, a dor que fazia a cabeça e peito doerem tanto exigia isso. Mas não! Estava com raiva demais para poder chorar. Gemeu, encolhendo-se e viu-se novamente como uma criança na escola quando as outras gritavam no pátio:

– Polaco sujo! Polaco sujo! – As crianças, também de 8 anos como ele, riam e debochavam dele.

– Não sou polonês. Eu sou belga!

– O polaco fugiu da Polônia. É polaco!

– Mas eu só tinha 3 meses. Sou tão belga como vocês. Não sei nem falar polonês. Sempre vivi aqui.

– Mentira, polaco é sempre polaco. Estrangeiro. Mineiro sujo de carvão.

– Ele diz que não é polonês. Vai ver que então é judeu, como quase todos os polacos.

– Mentira! Minha mãe é alemã.

– Pior: é um polaco sujo e é um alemão desgraçado, que invadiu nosso país na Grande Guerra de 14.

Jacques poderia ter chorado naquela hora. Era a vontade que sentia. Mas não! A raiva era forte demais para chorar. De repente, saltou em cima dos dois meninos e todos se engalfinharam no chão. Ganharam uma semana de suspensão os três.

Mas agora Jacques tinha 24 anos, rolava as pernas sobre a serragem do chão e as vozes do passado enchiam-lhe os ouvidos, como o fizeram, ano após ano, toda sua vida de criança e de adulto.

De repente, um salto: pôs-se em pé! Deu um chute num barril pequeno, que rolou pelo piso até estatelar-se na parede em frente:

– Burocratazinho filho da puta! Maldito! – E os passos no porão o levavam errático como uma fera enjaulada.

Eu fiz tudo por este país – a cabeça latejava! – Corri todos os perigos, ajudei as transmissões clandestinas, os jornais clandestinos, ajudei pilotos britânicos a voltarem às suas bases, enganei a Gestapo, nunca traí um companheiro e não me querem porque falta um maldito papel!

Deu um tremendo murro no ar, extravasando a fúria:

Fui prisioneiro e escravo na Krupp. “Chamem o belga, o belga traduz”, os alemães diziam, os franceses diziam, os prisioneiros holandeses diziam. O Belga!  Eu era o belga, o único belga num pavilhão com mais de 200 estrangeiros escravizados na Alemanha. E eu adorava que me chamassem de belga, porque belga eu me senti a vida inteira. Eu tinha orgulho de ser belga.

O ronco de um caminhão na rua, lá em cima, estremeceu a adega, inundou o seu silêncio, calou em sua memória o ruído ensurdecedor das forjas, das calandras, das esteiras, dos altos fornos, das bombas dos aliados caindo em Essen diariamente, do fragor mortal da parede do hospital desabando sobre seu corpo, soterrando-o em meio à neve.

Jacques afrouxou as pernas sobre os joelhos, ficou um só instante assim e então jogou-se de bruços no chão. E enfim a explosão inevitável chegou. A lava projetou-se para fora, copiosa. E ele chorou pela primeira vez desde que, três dias atrás, recebera a terrível notícia: cidadania belga negada em caráter definitivo! O choro convulsivo dominou todo o seu corpo por muito tempo.

Alterou-se a dor no peito, na garganta, nos olhos, intensificando-se primeiro. Depois, bem aos poucos, arrefeceu, o cansaço chegou, dominador e total, uma lassidão dolorosa tomou conta de todos os seus músculos. Com isso, a necessária distensão chegou a seus pensamentos. E, com ela, uma lucidez que não lhe fora possível ter até então. Quanto tempo havia passado assim?, perguntou-se. 10 minutos, meia hora? Mais?

Sentou-se outra vez e começou a respirar mais forte, superando a sensação de dor no peito. Porém, muito mais, superando a sensação de vergonha, derrota, revolta, frustração, de ódio, que havia engolido durante todas as horas daqueles três dias infernais.

Levantou. Firmou-se nas pernas. Uma nova ideia, muito clara, foi crescendo e crescendo, até dominar toda a sua mente. E ele disse, em voz alta, decidida, ostentando uma serenidade que lhe pareceu totalmente despropositada naquele momento:

– Belga não sou. Polaco, também não. Pois bem, se este país não me quer, então eu é que não quero mais este país!

Enxugou de vez os olhos, caminhou calmamente em direção à escada e falou outra vez, dirigindo-se aos barris de chope e cerveja, seus interlocutores e testemunhas dos momentos finais de sua agonia:

– Nunca fui polonês no meu coração, sempre fui belga. Mas belga nunca serei. Então serei cidadão de outro país, que eu queira e que me queira. Está decidido. Alea jacta est!

Momentos depois, o homem que reentrou no salão de seu bistrot era outro. Havia afundado no porão da adega com olhos de desespero, com alma de revolta, um homem magoado e perdido. Mas agora aquele par de olhos tinha um brilho estranho, um brilho de lava, seus passos tinham a força da certeza, eram do andar firme de um homem apaziguado e renascido.

Loulou vinha entrando no salão e viu aquele homem diferente. Jogou longe o avental que ia cingindo à cintura e deu um grito:

– Jacques!!!

E correu a abraçar-se com ele. Sabia, tinha certeza, o que ela estivera esperando tinha acabado de acontecer. Seu Jacques estava de volta. E estava estranhamente maior do que antes!

Jacques deu-lhe um longo beijo nos lábios, passou-lhe a mão nos cabelos delicados e sussurrou:

– Loulou, pensei que eu era belga, mas não sou. Então, ao trabalho, amor…Vou embora deste país!

Ela arregalou os olhos, assustada. Depois compreendeu toda a extensão do milagre que se operara dentro do seu homem.

Nêmesis! Lembrou-se da peça que encenara na escola: Nêmesis, a deusa grega da vingança. Jacques havia superado sua dor, a injustiça da rejeição vingando-se da Bélgica. E respondeu, placidamente, retribuindo-lhe o beijo com outro, igualmente longo:

Nós vamos embora deste país.  Não importa para onde. Aonde você for, eu vou.

Ficaram um longo tempo abraçados e imóveis no meio do salão, olhos fechados, braços nos braços, rostos colados, uma paz infinita os penetrando e envolvendo.

Teriam ficado assim pelo resto do tempo, não fosse o ruído dos primeiros fregueses encostados na porta de ferro do lado de fora, aguardando ansiosos pela abertura da casa. Com a alegria recuperada, genuína, sincera, Jacques ergueu a cortina de aço e recebeu de braços abertos seus primeiros fregueses da noite:

– Bon soir mes amis et au boulot. Mãos à obra….

E quem disse isso, soltando a caro custo a mão de sua inigualável Loulou, foi um Jacques Miedzinski em paz com a vida, alegre outra vez por fim.

          A partir do momento em que tomou aquela decisão, Jacques tornou-se outro homem. Não somente havia recuperado toda a sua alegria, mas, parecia, agora, um verdadeiro dínamo humano. Falava mais alto, movimentava-se com precisão, fazia tudo com mais entusiasmo.

Loulou, com toda sua sensibilidade, percebia nos olhos dele um brilho diferente, como se uma chama sagrada o estivesse animando e consumindo. Numa certa tarde, pouco antes de abrirem o bistrot, relatou isso ao padrinho:

– Ah, padrinho, Jacques é outro agora. Recuperou sua luz própria, é como se ele tivesse um fogo no olhar. Um fogo que eu só me lembro de ter visto numa noite em que eu ia embora do hospital, desesperada de medo que ele não estivesse vivo no outro dia. Mas na hora de sair, ele me olhou bem nos olhos e me garantiu: Pode ir tranquila, meu anjo. Eu garanto, eu juro que não vou morrer. Amanhã você irá me encontrar aqui mais vivo do que hoje, mais vivo do que nunca.

Loulou fechou os olhos e sorriu suavemente, revivendo aquela noite de agonia e de esperança:

– Eu achei que ele falava aquilo por falar, só para me consolar, mas então eu olhei nos olhos dele e percebi ali, bem no fundo, uma chama. Juro, padrinho, que eu vi uma chama, uma luz! Um brilho de vida, como eu nunca tinha visto. Então eu acreditei. E fiz a viagem de volta para casa com o coração mais leve, cantando baixinho o tempo todo. E quando mamãe veio com suas indiretas de sempre, que eu perdia meu tempo iludida com um moribundo, eu lhe disse, sorrindo: Mme. Van Rompaye, Jacques ainda vai ser o homem mais saudável de toda a Bélgica. Escreva isso, que eu assino embaixo.

De fato, a mudança de Jacques era gritante. Até mesmo o assunto da recusa de sua cidadania belga deixou de ser um tabu. Ele se referia a este fato inúmeras vezes, sem qualquer constrangimento ou mágoa, chegando até a fazer piadas sobre o assunto e descrevendo o baixote que o atendera no Departamento de uma forma que fazia todo mundo cair na gargalhada.

Loulou e os amigos que o conheciam o suficiente sabiam que ele não voltaria atrás. Houvesse o que houvesse, por mais que os negócios fossem bem, por mais que ele adorasse sua nova vida na Bruxelas libertada, ele iria embora da Bélgica. E o faria rapidamente. O “se iria” e o “quando iria” não eram, portanto, perguntas que os afligissem.

O que eles se perguntavam todos os dias uns aos outros era “para onde irá esse maluco”?

Mas, para essa pergunta, também ele, Jacques, ainda não tinha a resposta.

 

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