Natal na casa dos leprosos (David Gonçalves)

 

NATAL NA CASA DOS LEPROSOS

David Gonçalves

 

O sol de dezembro caía brutalmente sobre as ruas e inundava as casas baixas, de telhados enegrecidos, com luz ofuscante, ardente e forte.

Subia rua acima, exatamente quando o sol estava a pino, o jovem operário Germano, com seus instrumentos de trabalho a tiracolo – alicate, martelo, formão, pazinha de cimento, nível, alguns pregos. Cachorros dormiam sobre as calçadas, encostados nos muros, em pouca sombra, já que o sol do meio-dia reinava absoluto sobre as cabeças.

Ele estava muito preocupado e aborrecido. Era véspera de Natal e estava sem um mísero níquel. Casara-se há um ano, tinha um filho de três meses e uma mulher adorável. Mas o ano fora ruim. O trabalho sumira. O que fazia mal dava para o sustento. Por vários dias não trabalhara. E, nesta véspera de Natal, onde todos dão presentes, ele se sentia deprimido: o que daria de presente à mulher e a seu filho? Mesmo com o sol quente as pessoas circulavam pelas ruas com os pacotes de presentes comprados nas lojas.

Resolvera, então, bater de porta em porta, à procura de algum biscate. Quem sabe, e se Deus assim quisesse, ele faria algum reparo e obteria o dinheiro para comprar os presentes. Por isso, ele caminhava aflito, em diversas casas, parara, batera palmas ou apertara as campainhas, e as respostas foram negativas.

– Ora, rapaz, ninguém mexerá com nada nesta data. Volte outro dia, é tempo perdido, até nem parece cristão! – e fechavam a porta rapidamente.

– Hoje é um dia como outro – argumentava, desolado.

Mas ninguém dava ouvido. Esbarrava com um amigo, também do mesmo ofício:

– O que faz com as ferramentas, homem de Deus?! Não sabe que hoje é véspera?

Quis explicar, mas um bolo seco se formou à garganta.

– Um dia qualquer… Eu preciso de trabalho.

Deu as costas e subiu rua acima. Alguém o cumprimentou:

– Aonde vai com os apetrechos?

– Estou à procura de trabalho.

– Esqueça, rapaz. Hoje ninguém quer incômodo. Não espere por nada. É véspera. O Menino vai nascer. O povo quer festa.

– Bem… o que posso fazer?

“Oh, Deus, tenha piedade!” – gemia. “O mundo fechou as portas para mim. Estou desamparado.”

Passando por uma igreja, entrou, ajoelhou-se e rezou. Mas nada saiu de seus lábios. Estava visivelmente transtornado. Saiu de lá mais desesperado. Desceu rua abaixo, enveredando por um bairro pobre. Quanto mais andava, o suor porejando à testa sofrida, uma angústia se avolumava no peito. E doía.

No final do bairro pobre, praticamente nos campos, havia uma casa de leprosos, rodeada por muros altos, com portão de ferro. Aos olhos de qualquer pessoa, a construção se parecia com uma prisão. Na verdade, para ser uma prisão pouca coisa faltava. Os leprosos eram recolhidos das ruas e ali eram jogados como indigentes. Os que administravam o local também eram leprosos. Assim, a população da cidade pouco sabia do que se passava por lá e nenhuma vontade tinha de saber. Pelo que se sabia, os que lá iam nunca mais voltavam. Era como se já estivessem apodrecendo em covas abertas. Histórias horríveis eram contadas. Há anos nenhum padre aparecia naquela casa para celebrar missa ou emitir algumas palavras de conforto.

Pois, naquela véspera de Natal, o aborrecido operário, extremamente preocupado, não tendo outra opção, bateu ao portão da estranha e esquecida casa. Surgiu, então, uma figura envelhecida, as faces tapadas por um pano branco, com voz roufenha.

– O que o traz nesta casa?

– Estou à procura de trabalho – disse, prontamente.

– O que sabe fazer?

– Veja: sou pedreiro.

Mostrou a pazinha, o nível, o metro e o martelo.

– Espere um pouco – disse a figura envelhecida, entrando porta adentro em silêncio, como se voasse sobre as pedras do calçamento do pátio.

Ele esperou.  Uma esperança viva. Talvez ali, naquele lugar, teria bom trabalho e assim conseguiria dinheiro para os presentes. Esperou impaciente, ouvidos e olhos atentos. O sol das três brilhava forte. O calor era sufocante.

A figura estranha voltou acompanhada de outra, também com o rosto coberto. Germano notou que ambas não tinham lábios. Quase se arrependeu de procurar serviço em lugar tão estranho.

– O que sabe fazer?

– Um pouco de tudo. Faz três anos que estou no ofício.

– É capaz de construir, ainda hoje, um presépio?

Germano se espantou.

– Um presépio! Eu nunca construí… Mas se me derem um modelo, uma fotografia, um desenho… Eu faço!

– Então, venha conosco. Por aqui.

As estranhas figuras seguiram à frente, Germano atrás. Atravessaram imensos corredores, depois um pátio, em seguida um galpão. Os leprosos caminhavam  pelo pátio e pelos corredores. Alguns tinham faces deformadas, outros pernas com enormes feridas vivas. Um calafrio percorreu as espinhas de Germano.

Numa vasta sala, com mesas compridas, ele foi apresentado a uma pessoa que estava sentada numa cadeira de encosto alto. Não usava nenhum tecido sobre o rosto. Mas uma parte da face direita estava corroída, a ponto de mostrar os ossos.

– Seja bem-vindo, rapaz!

– Estou à procura de trabalho…

– Mas hoje é véspera de Natal. Por que não está com sua família?

– Pobres precisam de trabalho. Há dias não consigo serviço. A gente tem que comer.

– Se procura serviço, está com sorte. Você é capaz de construir um presépio para hoje à noite?

– Se tiverem um modelo… por que não?

– Aqui está.

Germano observou atentamente o desenho. Em seguida, concordou.  Foi conduzido ao local, um galpão velho, muito parecido com uma manjedoura. Havia areia, brita, tijolos, cal e cimento. Ele se pôs ao trabalho.

Uma hora depois a caminha do menino Jesus estava pronta. Já era noite. As luzes foram acesas. Ele continuou a tarefa. Trabalhava com tanta atenção que sequer observou centenas de leprosos o espiando, ao derredor. O estômago estava grudado às costas, a boca seca não liberava nenhuma saliva. Estudava atentamente o desenho e, em seguida, se colocava a trabalhar. Sempre faltava um detalhe. Enquanto trabalhava, ia pensando:  “Por Deus, quando terminar essa tarefa, as lojas estarão fechadas e não terei tempo de comprar os presentes”.

Dez horas soaram em algum relógio de parede. Badaladas secas. Ele se a apressou ainda mais. Uma sensação de impotência ia surgindo em suas faces. O que parecia fácil complicava-se. Agora estava fazendo os bancos onde os reis magos iriam sentar-se. A luz parecia mais fraca, amarelada. Olhou ao redor e espantou-se. Centenas de leprosos aguardavam impacientes. Rostos estranhos e deformados. Muitos deles não tinham lábios e nem dentes. Apenas um buraco no lugar de suas bocas. Sentiu medo. Quase girou sobre os calcanhares. Correr! O único desejo que sentiu. O cérebro dopou-se. Uma mão caiu sobre o seu ombro. Ele pulou como mola.

– Calma, rapaz!

Era o chefe da casa. O mesmo que o contratara. Um buraco na face esquerda. A voz roufenha, sibilada.

– Em que pé anda a obra? Pelo que vejo, quase pronta. Ótimo! Procure terminar até meia-noite.

– Estou acabando – balbuciou, trêmulo, com vontade de começar a rezar, lembrando-se da mulher e do filho.

A luz tornou-se mais fraca. Germano forçou as vistas. Queria terminar o quanto antes. Aqueles leprosos ao redor o incomodavam. Pouco antes da meia-noite, concluiu, exausto, como se aquele trabalho tivesse sugado seu sangue até a última gota.

– Pronto! A manjedoura está terminada, como no desenho.

– Ótimo! – aprovou o chefe da casa. – Você é um bom rapaz. Venha, vamos fazer o acerto.

Ele embrulhou as ferramentas, colocou-as na capanga de couro gasto e seguiu atrás. Na vasta sala, a mesma daquelas mesas compridas, de tábuas largas, o chefe serviu-lhe vinho, num copinho de barro.

– Beba! Isto refaz o corpo e o espírito.

Ele rejeitou. Poderia pegar a lepra.

– Não tenha medo. Não sou contagioso.

– Mas…

– Não se preocupe. Há anos ninguém vem neste lugar. Fomos esquecidos. Vivemos numa prisão perpétua.

Germano bebeu o vinho licoroso. O copinho de barro era frio e tinha gosto de limo.

– Por que aceitou o serviço, se todos fogem?

– Eu preciso de dinheiro para comprar os presentes de minha mulher e de meu filho pequeno.

– Ah, compreendo…

– Agora é tarde da noite. Nenhuma loja está aberta. Todos estão festejando o Natal.

– Aqui está o dinheiro.

Um envelope com diversas notas estava sobre a mesa.

– É seu. Pode ir.

Ao toque de uma sineta, a mesma figura estranha que o recebera veio acompanhá-lo até o portão. Quando passava pelo pátio, Germano ouviu um choro de criança na manjedoura. “Mas o que é isso? Uma criança nesta casa! É possível?” O choro ecoou novamente. E forte. Encalacrou-se em sua alma. O portão fechou-se atrás de seus passos. Na sua frente, a rua deserta. O céu brilhava. Germano respirou o ar puro da noite cálida e apertou o envelope cheio de dinheiro. Debaixo de um poste, sobre a fraca luz, abriu o envelope e arregalou os olhos. Havia muito dinheiro. Aquilo significava muitos meses de trabalho! Fechou o envelope e apressou os passos para ver se conseguia achar alguma loja aberta para comprar os presentes. Em todas as casas, de ricos e pobres, o ar festivo reinava. Uma lojinha aberta ainda. Comprou um ursinho branco e uma pulseira. A mulher e o filho ficariam contentes. Nas ruas, muita gente andava de um lado para outro. “Por Deus, como sou grato!” – mirou o céu estrelado. E se dirigiu para casa – uma meia-água na Vila Rica. Perto de seu casebre, ele divisou um amontoado de pessoas. Achou estranho. Alguma coisa acontecera. Sua mulher veio ao seu encontro, apavorada, aos berros:

– Por onde tem andado? Por onde?! Ai, meu Jesus! Roubaram o nosso filho! Roubaram o nosso filho!

Germano soltou um gemido. Ficou branco como cera. E tudo se apagou. Caiu no chão feito uma jaca madura.

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