Ninguém (Donald Malschitzky)

 

Ninguém

Donald Malschitzky

 

Encostada na mureta da rua, olhos opacos, olhar parado, fitando o nada, um chapéu meio touca escondendo os cabelos com suas pontas para fora, embrulhada em trapos de um cobertor encardido.

De companhia, um cachorro baio menos magro do que ela e que movia a cauda ao receber um carinho desajeitado, único gesto que ela se permitia.  Voltando à imobilidade de corpo e de alma, apenas o leve esvoaçar do cobertor no  dia de brisa soprava alguma vida na estática figura.

Apesar da rua movimentada, passava quase despercebida e seu nome era desconhecido, mesmo nos abrigos para onde raramente era recolhida e para onde,  passivamente, negava-se a ir,   só cedendo quando o cachorro adivinhava que receberia comida e se aproximava dos agentes. Não revelava seu nome e lá foi apelidada de Ninguém.  Um ou dois dias depois, já estava de volta, encostada à mesma mureta.

Do lixo de uma pizzaria de rodízio, recolhia as sobras de bordas de pizzas que os clientes deixavam. Dividia com o cachorro e nenhum dos dois se saciava.

Poucas vezes saía da imobilidade e do silêncio para pedir um dinheiro. Com o quase nada, conseguia pedras, não se sabia de onde nem como,  e sumia para um canto. Por minutos, os olhos brilhavam e o olhar parecia entender alguma coisa. Depois, voltava para seu lugar e, de novo, era Ninguém.

Dormia lá mesmo, enrodilhada, embrulhada nos trapos do cobertor. O cachorro se encostava nela. Às vezes, servia de travesseiro.

Há um tempo, tossia muito, principalmente à noite. Tosse pesada, querendo tirar algo de dentro dela e assustando o cachorro.  No sono, ensaiava canções de ninar desconexas e, no meio de soluços,  murmurava um nome que parecia ser “Letícia”.

Era dezembro,  e as luzes invadiram  vitrines e ruas. Algumas piscavam. Ninguém sentia-se fraca, a tosse presente também durante o dia. Estava quente, mas precisava do cobertor esfarrapado para se aquecer. Mesmo assim, tremia. As mãos de dedos queimados perderam a cor e tremiam. Para pedir, só estendia  as mãos.

A pouca distância, passou um jovem e seu olhar acordou: “Que moço bonito, pensou”. Quis estender as mãos, mas não conseguiu. Limitou-se a mirá-lo, e seu olhar saiu encantador. O jovem a olhou e guardou o quadro em suas retinas. Seguiu, passando em frente a uma lanchonete. Por impulso, pediu uma marmita. Corrigiu: “Duas”.  Levou-as à mulher e ao cachorro, que pulou em suas pernas, agradecendo. Sorriu e acenou um adeus.

Nessa noite Ninguém não cantou sua canção de ninar. Sonhou que o moço bonito voltou e lhe trouxe muitas pedras, tantas como nunca viu. E brilhavam e piscavam mais que as luzes das vitrines, e que estava com uma roupa nova e que Letícia acenava para ela.

No dia 25 de dezembro, na frente do necrotério, apenas um cachorro enrodilhado.

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