Notícias de bichos mínimos do chão (Joel)
Notícias de bichos mínimos do chão
Joel Gehlen
Tenho convivido com ratos, pequenos camundongos do mato. E sem muitos conflitos. Há um esforço de lado a lado por uma existência suportável. Aqui no tugúrio arribado na franja da floresta, é de esperar que eles apareçam. Conviveríamos com certa harmonia, fossem só suas aparições-relâmpago, sumindo logo no olho do invisível. Mas divido o pouco espaço daqui com insumos das ocupações da escrita. Os milhares de livros, documentos, fotografias, gravuras são a parte mais frágil desse contubérnio triangular.
Quando percebo seus vestígios nas estantes, a tolerância cai a níveis insustentáveis. Às vezes, na madrugada, ouço-os a roer alguma raridade secular, têm preferência por papéis antigos. Em pânico, em pé, em buscas inúteis, atravesso a noite. Só encontro notícias velhas de sua existência. A opção é péssima: iscas com veneno. Mas não me acho no direito de matá-los, estou quase tão na casa deles quanto eles na minha, com a diferença que não roo a grinalda de seus guardados. Eles atraem serpentes, no fim de semana matei uma cascavel no quintal. Uma jovem cobra, mas com veneno suficiente para derrubar um cavalo. Por fim, optei por um novo gato, o último que cá esteve, o “Degá”, tombou tragicamente em fevereiro. Arranjei um já adulto. Come e dorme dia e noite. Mas sua presença afugenta os roedores.
As formigas-cortadeiras tesouram o lírio de Julieta sem piedade, a muda trazida do balcão dos Capuleto, em Verona, não sai do lugar. Há anos me debato contra elas. Passei noites de lua a defender a trepadeira, esmagando uma a uma com as unhas, mesmo assim, o lírio amanhece completamente desfolhado. E também o pé de lichia, que já era para ser uma árvore, mas encontra-se a meio pau. Atiço o gato contra as formigas, o felino se refestela e rola sedoso; com marcialidade elas o desviam, levando às costas o pesado grão da sua ração. É maio, o inverno está chegando, as cigarras se calam, e todas as formas de vida projetam pontes com a própria sombra para passar à luz.
Crônica publicada em A Notícia, em 09/05/2019