O alemãozinho da meningite (Fiuza)

O alemãozinho da meningite

A enfermeira chegou correndo atrás de mim, no corredor do hospital. Atropelando as palavras, ela gritou que uma criança estava muito mal no Pronto Socorro e pediam minha presença lá, imediatamente. Eu interrompi a avaliação que fazia na enfermaria e me apressei, rumo ao PS.

Lá vi a criança. Era um lourinho de uns 5 anos, bonitinho, com carinha de alemão. Estava muito agitado, se retorcendo na maca e gritando. O pai, muito assustado, falava rápido. O problema começara poucas horas antes, com o garoto reclamando de dor de cabeça e com febre. Depois teve vômitos e já começou a se agitar.

Quando vi a criança mais de perto, me assustei. Foi quando eu vi aqueles pequenos sangramentos embaixo da pele, espalhados pelo corpo. Pensei logo na terrível síndrome de Waterhouse-Friderichsen, um nome complicado que mete medo nos médicos. O garoto continuava se contorcendo e gritando. O pulso estava acelerado e me pareceu fraco. Levantei a cabecinha e constatei que a nuca estava rígida. Era meningite por meningococo e a infecção já havia se generalizado. Vi que era muito grave. Fomos correndo para a UTI.

Isto ocorreu na época da epidemia de meningite na década de 1970. Eu não saia do hospital. Era um caso atrás do outro. Cheguei a fazer o diagnóstico de meningite em mais de 20 pacientes em um único dia. Quando o paciente chegava no PS com dor de cabeça ou com febre, já chamavam o neurologista. Nós não pensávamos duas vezes e fazíamos a punção lombar, retirando o líquido espinhal para exame. Muitas vezes o líquido já saia com pus e iniciávamos logo o antibiótico. A maioria se salvava. Alguns morriam.

Eu tinha uma filha de menos de um ano e a situação me dava medo. Quando chegava em casa, tirava toda a roupa na garagem e ia direto para o banho. Depois de ter contato com tantos, eu era certamente um vetor. Mas eu sabia que era minha obrigação cuidar daquela gente. Eu almoçava, colocava roupa nova e voltava para o hospital. Quase toda noite me chamavam, muitas vezes de madrugada. Mas, em cada um dos casos que eu dava alta, sentia a emoção e o agradecimento.

Chegamos com o alemãozinho na UTI, todos correndo. Enquanto eu fazia a punção lombar, a enfermeira já pegava a veia. Monitorizamos e iniciamos os antibióticos e a hidratação. Mas a criança parecia piorar. Sua pulsação acelerava, sua pressão arterial caia. Aumentamos a hidratação, continuava a piorar. Demos cortisona, sem melhora. O pulso cada vez mais fino. A criança parou de se agitar e ficou estática, sem reação. Estávamos perdendo a criança, rapidamente. Era terrível. A pressão continuava a cair e não respondia nem a vasopressores, medida de desespero. O monitor parou de apitar. O coraçãozinho parou. Não!!! Vamos tentar, não podemos perde-lo!!! Massagem cardíaca, mais vasopressor, adrenalina intracardíaca. Sem resposta. Não estávamos conseguindo. Nada ajudava. A vida da criança se esvaia, bem na nossa frente. Nada funciona. Nada funcionou. O alemãozinho morreu.

Quando, depois de meia hora, paramos a massagem cardíaca, ficamos todos parados, inconformados. Vi que a enfermeira chorava. Chorei também. Eu ainda tinha a terrível missão de dar notícias para a família, que estava na porta da UTI e aguardava as notícias do filho.

Abri a porta e vi o pai na frente, com a face suplicante. Quando dei a notícia, ele fez aquele olhar terrível, que nunca mais esqueci. Chegou perto de mim, mirou meus olhos em desespero, colocou as mãos postas em frente ao peito e caiu de joelhos na minha frente, gemente, olhando para cima. Estava acabado. Quase 50 anos depois, esta imagem ainda me acompanha.

Aquela epidemia de meningite foi a pior que o Brasil registrou. Hoje são histórias e estatísticas. Histórias de como as notícias foram inicialmente censuradas pela ditadura, mas que depois explodiram. As estatísticas mostram quantos foram infectados e qual a percentagem de óbitos.

Histórias. Estatísticas. Do alemãozinho ninguém fala.

 

COMPARTILHE: