O andarilho (David Gonçalves)
O ANDARILHO
David Gonçalves
Chegou um andarilho aqui em casa outro dia. Vinha do sertão, lonjuras, onde Judas tinha perdido as botas. Perto da varanda, parou, medindo os passos. Na testa, a poeira das estradas amarelas, bastante suado; nas costas, um saco roto, enfarelado. Barba vermelha, endurecida, encaracolada e suja, podendo ter piolhos. Olhos profundamente exaustos, cor da terra e da icterícia. Os cachorros de casa não latiram, não saíram do rancho, não mexeram as orelhas caídas. Apenas ergueram os enormes focinhos pretos e cheiraram o desconhecido. Estávamos no arrozal. Era março-abril: os cachos amarelos, arcados e pesados tingiam o mundo de certezas e promessas. Meu irmão sentiu tonturas. Talvez por culpa do calorão, o suor escorrendo gostoso pelo rosto. O pai, deixando a enxada encostada num tronco seco, logo se movimentou para atender o andarilho que se emudecera ali no meio do terreiro, bem em frente de nossa casa de palha, recolhido no silêncio. Parado na terra, parado no céu, parado na solidão. Mãos erguidas, proféticas. O pai indagou, fez gestos. O viajante não respondeu. O pai pensou que era doido e falou alto. O pobre não se moveu: ali estava uma estátua. Todos os irmãos se aproximaram, rodeando o desconhecido. Tomamos posição. Podia ser que aquele homem fosse doido de verdade e, de horinha para outra, espirrasse bengala nos costados do pai. Mas o desconhecido não se mexia. De repente, reparamos que até o vento da tarde havia parado e os eucaliptos se aquietado. O mormaço invadia, crescia, o suor corria em bicas. Daí, o irmão mais velho – Moisés – gritou-lhe, pretejando o sangue nosso:
— Qual o destino?
Mas o andarilho não respondia mesmo. No meio do arrozal, poderíamos usá-lo como espantalho. Ali no terreiro, não havia jeito. Insistimos, atormentamos. O pai até exclamou, enfezado que estava:
— Este merda é doido!
Conclusão muito boa. Todos pensavam assim. De tarde, ainda o andarilho estava lá. Parado na terra, parado no céu, parado na solidão. Escureceu, as estrelas pontilharam os segredos da vida. A lua subia redonda sobre os arvoredos e derramava o lençol de prata sobre o arrozal maduro. A gente olhava para a lua e via o andarilho perdido no cristal. Não adiantava meu pai insultá-lo. Ele não arredava pé. O terreiro parecia sagrado. De noite, sonhando, tive a ideia: como os arrozais… Maduros, enormes cachos caídos. Poderíamos levar o andarilho no imenso mar amarelo e depositá-lo no meio das plantações. Assim, o pai não precisava da molecada para espantar os passarinhos. Os moleques, batendo latas e distraídos, estragavam mais, pisavam nas touceiras, arrebentavam os talos. O andarilho não daria esses problemas. De manhã, falei com o pai: ele aceitou. Pegamos o homem e o conduzimos ao arrozal. Todo dia, os moleques levam a comida na marmita. Ele pega os grãos de feijão com as mãos sujas e os engole, barulhando o pomo-de-adão. Em seguida, volta na mesma posição.
Os arrozais já foram colhidos e o andarilho ainda não saiu de lá. Os moleques já não querem levar a marmita: o medo se apoderou até mesmo de nossos vizinhos. Com a marmita a tiracolo, eu parto para a roça. Outro dia, havia um enxame de abelhas africanas pretejando seus membros inferiores. Lentamente… Não quero mais voltar lá. Tenho medo. Ele está parado na terra, parado no céu, parado na solidão. Não consigo distingui-lo da árvore nem do rio. Árvore é árvore. Rio é rio. Um homem é um homem. Mas, ultimamente, tenho muitas dúvidas: um homem também pode ser objeto. Tenho muito medo.