O Campeão (Hilton Görresen)
O CAMPEÃO
Hilton Görresen
O velho estava sentado numa cadeira, com um travesseiro embaixo das nádegas. Às vezes balançava as pernas para não permanecer na imobilidade. Pessoas vinham chegando e se dirigiam a ele para dar os parabéns. A cada uma delas, fazia menção de se levantar, com as mãos frágeis, repassadas de veias grossas, apoiadas nos braços da cadeira. “Não se levante, seu Josefo, por favor”. E se curvavam para beijá-lo no rosto. Traziam presentes, um par de meias, pijamas, um álbum com times de futebol. Estava completando 95 ou 96 anos, não se sabia ao certo, nascera no sítio e ali as pessoas não se preocupavam em registrar os filhos de imediato.
Na parede da sala, acima dele, uma grande foto com o time inteiro do Bate Estaca, com a faixa de campeão de 1957. Ele no lado esquerdo, portando o bigode fininho do qual nunca se desfez, agora completamente branco; como atacante, foi quem marcou o gol da vitória nesse campeonato. Era solteiro na época, as normalistas o assediavam, entre elas dona Ercília, com quem se casou. Era convidado para festinhas, com cubas-libres e som de eletrola, e para escrever e assinar nos álbuns de lembranças das moças. Assinava somente Josefo, o “o” final era uma bola de futebol.
Num balcão encostado na parede, meia dúzia de troféus. O marido da neta mais velha o chamava de campeão – ô, campeão! –, às vezes ele nem sabia porquê. Olhava com curiosidade a foto e perguntava: Quem são? O neto explicava, o apontava na foto: olha o vô aqui. Ele duvidava, a imagem não combinava com o que via no espelho. E ficava rindo do Piqui, o menorzinho do time, abaixado à direita na foto, como se fosse uma criança.
Às vezes escarrava dentro das taças de troféu. A filha mais velha, viúva que cuidava dele, ficava furiosa. De novo não, papai! E chamava a empregada para lavar.
Chegados todos os convidados, veio a hora de partir o bolo; antes cantaram parabéns, conduziram o velho, sobre a cadeira, para perto da mesa e o fizeram soprar as duas velinhas. Ele deu um sopro fraco, que terminou num arranco de tosse. Depois sorriu feito um bobo, como se dirigindo a um fantasma do passado, comeu um pedaço de bolo, tomou uma guaraná, e o levaram novamente para o canto da sala.
Sentia falta de dona Ercília, às vezes a confundia com a filha. Chamou-a e perguntou quem eram aquelas pessoas. O que estavam fazendo ali?
– É seu aniversário, papai.
– Quanto anos estou fazendo?
– Sessenta e cinco, ela mentia. O senhor ainda é novo.
Deixaram-no abandonado na cadeira, enquanto riam e conversavam, garrafas de cerveja vazias se avolumando na mesa. O velho sentiu um líquido quente vertendo entre as pernas, havia urinado nas calças. Não se queixou, quando essas pessoas fossem embora ia tomar um banho.
Havia momentos em que seu Josefo se quedava nervoso, impaciente, ouvia gritos da multidão, aclamando-o, ele se reconhecia correndo no campo verde atrás de uma bola, driblava oponentes, chutava e ouvia o grito de gol. Os netos o conduziam para perto da TV em dias de jogos, que sua memória se acendesse com os lances dos jogadores. Por momentos, o velho se entusiasmava, seguia as jogadas, ou se frustrava com os azares do time por ele escolhido no momento. Nos jogos do Botafogo, que havia sido seu time do coração, perguntava: Cadê o Didi, Nilton Santos, Garrincha? Estão aposentados, como o senhor, vô. Não jogam mais.
Outras vezes, recordava um garoto jogando peladas num pasto. Tinham que afastar as vacas e se desviar da bosta e dos buracos do campo. Era ágil e chutava bem, uma promessa para o futuro. Estudos, foi só até o curso primário, depois se meteu em outras atividades, até se fixar como marceneiro. Mas sua paixão era o futebol. Iniciou jogando pelo time dos Marianos. O moleque era bom, driblava feito um bailarino, fazia que ia para um lado, escapava com a bola por outro, cutucava a bola entre as pernas do adversário, dava chutes potentes antes da bola quicar no chão. Foi indicado ao Bate Estaca pelo padre Eugênio. Fez um teste e se saiu brilhantemente.
O Bate Estaca era um clube de cidade pequena, mas disputava os campeonatos regionais, sendo muito popular entre os trabalhadores do porto. Tinha sede própria e campo em um terreno cedido pelo antigo proprietário da madeireira. O campo era utilizado também nos festejos de Primeiro de Maio e nas festas juninas.
Os convidados da festa, já com voz engrolada, começaram a cantar, batendo com os copos na mesa:
Meu coração/Não sei por quê
Bate feliz/ quando te vê…
Ele estava quase cochilando. A cabeça batia no espaldar da cadeira e caía, pesada. As calças molhadas incomodavam. Rezou para que as pessoas fossem logo embora. Não sabia o que estavam fazendo ali, com aquela balbúrdia toda.
De repente se lembrou: estavam comemorando a conquista do campeonato regional, em que haviam vencido o time do Gamboense por 3 x 2 com o gol final dele. Ataque invencível, Betinho, Josefo e Bem-te-vi.