O descobrimento de Joinville pelo Conde de Valsugana (Postai de Souza)
O DESCOBRIMENTO DE JOINVILLE PELO CONDE DE VALSUGANA
Postai De Souza
O carro chegou à subida da Rua XV de Novembro, no Centro de Joinville, com um senhor grisalho, com chapéu estranho, de vestes antiquadas e bengala, que entrou de súbito no palacete.
Assim que aportou ao local indicado pelos cidadãos que o escoltavam, este pôs-se a caminhar pelo grande terreno e logo visualizou a entrada indicada, adentrando à mesma. Mal o fez e a secretária do médico já lhe aguardava, uma senhora elegante de nome Raquel S. Thiago:
– Bom dia, senhor. Tudo bem?
– Mais ou menos. Vim consultar-me com o médico.
– Sim, claro, ele já está lhe esperando – e saiu-se apressada à sala do conhe- cido médico joinvilense.
Mal se passaram quinze segundos e estava na porta aquele senhor calvo, de jaleco branco, que o mandou entrar.
No recinto de paredes brancas, grandes janelas avistando um pequeno lago, jazia uma cadeira confortável havia muito tempo não limpa, mas de bom aspecto, apesar do evidente tempo de vida que possuía.
– Vim relatar-lhe uma desavença em virtude de um lugar que descobri. E dei-lhe o nome de Joinville, pois meu francês é superior a qualquer vontade que eu possua de nomear-lhe em um simples português. Até pelas minhas resignações que possuo com D. Pedro I e seu filho…
O médico recostou-se em sua cadeira e ouviu atentamente a história de nosso personagem, que começava mais ou menos assim:
“Eu era jovem, na casa dos meus quinze anos e residia com meus pais num pequeno vale encrustado entre as montanhas suíças e italianas, chamado Valsugana. Mais precisamente em Roncegno, uma cidadezinha pequena que era a sede da comuna, mas que possuíamos sob seu manto nossa pequena vila, a Vila Postai.
Assim como meus antepassados, gostamos de morros, pirambeiras, montanhas e subidas íngremes, de modo que nos estabelecemos no local por volta de 1600, vindos da Hungria.
Meus avós prosperaram financeiramente e possuíam algumas propriedades, sendo que meu pai resolveu enviar-me para Paris para estudar, apesar do surto de cólera que acometeu a cidade anos antes. Isso por volta de 1835, com meus 15 anos. Ah, permita-me apresentar: meu nome é Ferdinand Eduard Leonce Mathias Postai.
Bem, parti rumo à Paris e levei dias a bordo de uma carruagem maltrapilha, mas que chegou ao seu destino após muito quebrar pelo caminho. Fui recepcionado por um funcionário amigo de meu pai, que trabalhava no Paço Municipal e assim, às escondidas, fiquei no sótão do Hotel de Ville por alguns dias, até melhor me acomodar na cidade-luz.
Lá, apesar das dificuldades que os pombos de dia e os morcegos à noite me impunham, resisti bravamente e encantei-me com a Paris pós-iluminista, suas artes, cores, cheiros, sensações e paixões.
Logo que me apresentei à Sorbonne (dou graças a Napoleão que a reabriu depois da Lei Chapelier!), minha universidade e a qual possuo enorme honra de ter-lhe fre- quentado e deixar-me absorver tamanho conhecimento e dignidade, encontrei pares que me faziam companhia à altura de minha importância.
E digo isso sem o menor constrangimento ou audácia de parecer orgulhoso: de fato, pessoas do meu nível acadêmico, social e financeiro enfim participavam de minha vida de modo a engrandecer-me o ego, as influências e o poder.
Na faculdade, conheci o filho do prefeito, Bernard, e com ele vieram festas, jantares e tornei-me íntimo a ponto de frequentar as festas da monarquia. Comparecia aos eventos do Rei Luís Filipe I e tornei-me amigo também de Chico, o apelido carinhoso – e aportuguesado – que demos ao Francisco Ferdinando, seu filho.
Já no início do curso, Chico resolveu fazer uma viagem e conheceu Francis- ca, filha do Imperador do Brasil Dom Pedro I. Ela odiava o Brasil e passava longos tempos em Portugal e, de lá para Paris, era um pulo!
Pois bem.
O Chico e a Chica, como carinhosamente lhes chamávamos, se apaixonaram embaixo do Arco do Triunfo – o qual tinha sido inaugurado anos antes, em 1836. Os dois se casaram no Brasil, já que o pai da noiva assim exigiu, em 1843, mas tão logo o fizeram já retornaram à Europa.
Assim, formado e titulado, a vida em Paris parecia iniciar para mim já na parte de cima da casta social, sendo encarregado das consultas jurídicas do “Seu Filipe”, como chamava o pai do Chico.
Até que… tudo mudou.
Revoltas acometeram Paris por volta de 1845 e para livrar minha vida de um enforcamento (desejo da maioria da população com relação ao Rei, seus familiares e súditos próximos, como eu), Chico pediu a seu pai que me fizesse a honraria maior de minha vida e homenageando as terras de meu pai, deu-me o título de Conde e, tal qual minha origem, nomeando-me Conde de Valsugana.
Assim, em 1848 tive que fugir de Paris, juntamente com o Chico e a Chica, para Londres. Mas foi por pouco tempo, até porque meu inglês nunca foi bom o suficiente para garantir-me o sustento, resolvi sozinho aceitar o convite que de Leonce Aubé, outro amigo francês da Sorbonne e que por lá se refugiou, e partimos eu e este rumo à Hamburgo, na Alemanha, onde Leonce possuía contatos. Afinal, o francês era então a língua universal atrás apenas do inglês e muito utilizada na Europa naquela época.
Mas quis o destino que ficasse pouco tempo, pois no gabinete em que fui alocado, do senador Christian Mathias Schroeder, a vida deu-me uma chance de fazer meu nome perpetuar-se na história.
E tudo estava ligado a Eduardo, o filho do senador. Ele e eu, junto com Leonce, fomos designados para cuidar dos negócios do político e, olha o destino, das terras que o Chico e a Chica tinham recebido de presente quando se casaram.
Onde?
No Brasil.
Sim, no Brasil. Aqui. Longe, longe de tudo e de todos. Longe da civilização.
Longe da Europa. Enfim, longe do mundo.
Mas, no auge de meus 30 anos bem vividos anos de romances e solteirice enraizada, parti com meus amigos em um grande navio rumo ao Rio de Janeiro. O Leonce, ou Leo para nós, foi tido como representante do Chico e da Chica e também do senador, o que o Dudu nada gostou. Mas esse só queria saber de festas, tal qual eu.
Rumamos ao imenso navio e chegamos à cidade maravilhosa – que eu ainda não conhecia o título e nem a mesma – no final de 1849 e ficamos pasmos. Não havia lugar no mundo, pelo menos no mundo civilizado, que fosse mais lindo que o Rio de Janeiro. A beleza natural do local encantava e cobria de magia qualquer um.
Fiquei encantado. Estupefato. Maravilhado.
Chico e Chica ficaram de vir ao Brasil também, após inúmeras cartas nossas relatando a “descoberta” de um paraíso e que não era uma nação descivilizada, mas sim exótica. Mas rumos outros tomaram suas vidas e nunca chegaram a conhecer suas terras.
Ah, sobre suas terras!
Já ia me esquecendo: na verdade, o senador Mathias, como era conhecido, fundou uma empresa denominada Colônia Dona Francisca, em homenagem clara à Chica, e com isso trataríamos das questões legais para a colonização dessas terras por imigrantes euro- peus, já que a terra na Europa estava deveras cara e os impostos altíssimos.
Cada qual de nós ganharia algumas léguas de terras pelo trabalho de 1 ano, o que era um bom pagamento, à nossos cálculos.
Claro. Era bom para todos, pois o Chico e a Chica precisavam de dinheiro diante do fim da “mamata real”, como todos nós. O senador Mathias tinha fundos para inves- tir nisso e eu e Leo o conhecimento jurídico e de engenharia que precisavam. Dudu, claro, seria os olhos do político no sul do Brasil.
Como chegamos ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil, quase na virada do ano de 1849 para 1850, presenciamos muitos espetáculos junto à praia, com rituais até então desconhecidos para nós.
Aquilo fascinou a todos, mas em especial ao Dudu. Ele não sabia ainda que seu pai tinha nomeado Hermann Guenther como diretor da Colônia e, tão logo soube, e felizmente para o bem de todos, tratou de rebelar-se contra o pai e assumir de uma vez por todas a condição de empresário e político. Até ali, era apenas o filho solteirão de um político e empresário rico encantado com os encantos da cidade-maravilhosa. Com seu ego afetado, enfim despertou para a vida adulta.
E soube, claro que por carta, por um descuido do pai, que lhe cobrava a chegada à Colônia Dona Francisca. Com isso, não tivemos jeito a não ser partir para o sul do Brasil, rumo a terras novas a serem exploradas. Chegamos ao Porto de São Francisco do Sul, homenagem flagrante ao Chico, e lá ficamos os três.
Entramos na Baía da Babitonga com nosso barco e ali ancoramos, quando uma forte tempestade nos pegou de surpresa.
Eu, que nunca tinha experimentado mariscos silvestres na vida e aceitando o convite de um prazeroso jantar com nativos da região do porto, esbaldei-me com tamanha iguaria e deliciei-me por horas e horas.
Obviamente que o prazer cobra um preço. E alto.
Madrugada de 8 para 9 de março de 1851 e uma grave diarreia me acomete. Sem que ninguém visse, ouvisse ou soubesse, peguei o primeiro barquinho que dispunha an- corado junto à nossa grande barca e rumei a um lugar seguro, distando grande espaço para que não me vissem despido e à mostrar grande embaraçamento diante de tal situação.
Aportei numa curva de um rio, que mais tarde nomeei-lhe mais tarde Cachoeira por ter em seu início – e lá se iam algumas léguas, depois fui saber – uma pequena queda d´água. Ali despi-me de qualquer pudor, tirei as botas, senti o mangue afundar-me pouco os pés, tirei minhas vestes e destronei o que me consumia em fortes cólicas.
E fiquei ali, a fazer minhas necessidades, refletindo em tudo que minha vida tinha se transformado, em como tinha ido parar naquela situação. Lembrei-me do “Seu Filipe”, do Chico, da Chica, enfim… até do Senador Mathias. O ideal de todos é que aquelas terras fossem uma cidade feliz! Estávamos ali para isso. Para fazer daquele local uma vila de novas esperanças. Mas como seria, com tanto mato, mangue, mosquitos…?
Não poderia me abalar, diante daquela situação. O local tinha futuro, boa projeção geográfica e logo receberia uma leva de imigrantes, todos com esperança de que iniciariam uma nova fase de suas vidas.
Àquele local, naquela condição, resolvi chamar-lhe de “vila feliz” em francês. A sagrar que depois da “tempestade” que despejei viria a “bonança” que eu prometera, finquei uma cruz no local e batizei de Joinville, assim mesmo em francês, ainda que não houvesse qualquer projeção de imigrantes franceses para sua colonização.
Voltei para nossa barca aliviado e contei-lhes o que fiz. Até hoje Leonce me agradece por ter dado um nome francês ao local e o Dudu ficou muito bravo comigo depois disso. Ele queria Mathiasvillage, em alemão e em homenagem ao pai, mas depois batizamos um rio que cortava o local com o nome do pai dele.
Enquanto discutíamos – sim, porque virou uma discussão acerca do nome e do fundador do local, bem como das circunstâncias impróprias e embaraçosas de como se deu tal – aportou a Barca Colon, chegando da Alemanha: a primeira grande barca de imigrantes europeus aptos a colonizar a cidade.
Quisera que Chico e Chica tivessem visto aquilo! Até mandamos, a partir dali, construir-se um castelo – na verdade um pequeno palacete – para lhes abrigar em caso de visita, mas infelizmente nunca chegou a ser ocupado pelos mesmos. Até porque a construção se iniciou anos depois da ideia devido aos altos custos que tivemos para implantar a sede da Colônia.
Mas foi ali que tudo prosperou. Nos meses e anos seguintes não paravam de chegar barcos e barcas de todos os tamanhos, no máximo de sua capacidade, com pessoas dispostas a trabalhar para iniciar uma nova cidade.
Fiquei maravilhado com aquilo. Mas tanto Leo como Dudu não se conformavam como tudo aquilo tinha acontecido e como fiquei importante depois de reconhecido como descobridor de Joinville. A situação ficou insustentável. Eles queriam a todo custo ter a importância que eu tive – sem querer. E me pregaram uma peça. E que peça!
Um dia, estava eu em meu escritório na Colônia quando chegou de barco um senhor chamado James Herrison, um homem que se dizia australiano – o que muitos duvidavam. Para ajudar, em seu estranho barco estava um maquinário o qual ele chamava de refrigerador, que ajudava a esfriar as coisas e que seria muito útil à Colônia, pois poderíamos armazenar alimentos e bebidas para posteriormente revender na Europa pelo Porto do Chico.
Tal forasteiro foi bem recebido por nós três e tão logo nos explicou que sua geringonça funcionava (pelo menos em tese), após inúmeras instruções físicas e químicas, Leo e Dudu resolveram pregar-me a dita peça e me colocaram dentro da máquina.
Eu, soberbo e audacioso como sempre fui, duvidei do funcionamento do aparelho e ali fiquei até provar-lhes que eu continuava com o sangue quente. Ou seja, a máquina não funcionou. Era evidente. Eu sabia!
O problema é que não lembro bem como tudo se sucedeu depois disso, mas acordei há algumas horas e não reconheci mais a nossa vila, as pessoas, nada, e nem sei onde Leo e Dudu estão escondidos. Vi carruagens estranhas andando sem cavalos, sendo grandes e pequenos, com bicicletas com motores que correm feito loucos, um tipo de chão duro e que não causa poças de lama, enfim, uma terra que não é a minha Joinville.
Comecei a questionar as pessoas e chamaram-me louco! E disseram que o único homem que poderia me ajudar seria um médico, o senhor, passando-se uma série de recomendações para que me acompanhassem, tal qual o fizeram até a porta… e aqui estou, para provar para Leo e Dudu que a máquina não funcionou. Aliás, esqueci de lhe perguntar, doutor, qual sua graça?”.
– Oscar Schroeder, ao seu dispor…
Postai de Souza, Fevereiro de 2020.