? “O dia em que o povo venceu” (Lufiego)
12 DE AGOSTO DE 1798
O DIA EM QUE O POVO VENCEU
Cavaleiros da Luz – Bahia
A Baía de Todos os Santos, chamada Kirimuré pelos nossos antigos avós Tupinambás, porta de entrada do Brasil, por onde passou Tomé de Souza para iniciar a grilagem de nossas terras e não para colonizar, tem sido um dos maiores palcos da história de nossa amada pátria. Conta a tradição, e a história registra, que nestas águas, que formam um seio de mar, penetrando no continente sul-americano, onde se espraia a antiga capital do Brasil, fora fundada a entidade Cavaleiros da Luz, patrocinadora da Conjuração Baiana. Academia ou centro maçônico de estudo e difusão dos ideais iluministas, de fomento ao debate das questões geopolíticas relevantes do final do século XVIII, e de acalorada campanha emancipacionista e de libertação do povo brasileiro, não apenas do jugo colonial, mas também do jugo social e da escravidão, tema pouco discutido pelos conjurados mineiros de 1789, mas muito presente na Bahia, embora alguns membros da elite recalcitrassem. O Dr. Cipriano Barata era abolicionista e maior nome da academia maçônica Cavaleiros da Luz. Na realidade, quem sustentou o caráter abolicionista da Revolta dos Alfaiates foram as classes sociais populares, que protagonizaram o movimento separatista e pagaram o preço por isso, não apenas por terem sido sediciosas, mas porque tiveram o atrevimento de invadir uma seara – a política – reservada apenas a brancos e ricos, sendo mulatos, negros e pobres. O chicote marcou as costas de centenas de soteropolitanos, o degredo condenou os degredados à morte lenta na África e a forca executou os quatro maiores mártires da Bahia e do Brasil. A elite, médicos, professores, militares, em grande parte membros do centro Cavaleiros da Luz, flagrantemente devido à posição social e relações daí decorrentes com as autoridades portuguesas, e sob o subterfúgio de terem abandonado o movimento antes mesmo do dia 12 de agosto, manteve os pescoços no lugar e teve a pena de prisão reduzida a poucos meses. Alguns sequer foram detidos e presos.
Num vislumbre do que dizem os escritores maçônicos, não são raros aqueles que indicam peremptoriamente a instituição Cavaleiros da Luz como uma Loja Maçônica. Contraditando-os, existem os que negam essa condição; considerando aqueles primórdios da entidade Cavaleiros da Luz essa discussão é totalmente despicienda. Certamente, era um centro maçônico vanguardista, receptivo às ideias iluministas e aos ideais da Revolução Francesa, embora a presença de monarquistas no grupo[1]. Imaginem uma academia composta pelos seguintes membros: o economista José da Silva Lisboa, monarquista, cujo nome está ligado à Abertura dos Portos em 1808[2], que depois viria a ser o Visconde de Cairu, o médico Dr. Cipriano Barata, um dos maiores nomes da maçonaria executiva brasileira, o professor de latim Chico Barreto; o tenente Hermógenes Pantoja, o farmacêutico João Ladislau e o padre Francisco Gomes. Maçons, que se reuniam para ler e traduzir Rousseau e Voltaire.
Conjuração Baiana
Liberdade, Igualdade e Fraternidade
“Animai-vos povo bahiense que está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos; o tempo em que todos seremos iguais”
A Bahia
Hoje, depois de tanto acompanhar de longe, e de ter morado lá, do final de 1977 ao início de 1979, tendo em um ano e pouco, aos dezesseis anos de idade, vivenciado intensamente o cotidiano local, entre Salvador, Camaçari e Feira de Santana, tenho saudades da Bahia e concluo daqui, do litoral catarinense, que a régua e o compasso não foram suficientes para que ilustres baianos do presente continuassem recebendo nosso aplauso, faltou-lhes o compasso do ritmo certo, da retidão de movimentos. Outros baianos, e são muitos, a exemplo do Dr. Abdon Batista[3], soteropolitano que fez história no norte-catarinense, merecem nossa admiração. Assim dito, apresento-vos uma terra com cheiro próprio! Uma terra com uma dimensão telúrica impressionante pela pujança da natureza, seja pelo mar, pela Mata Atlântica ou pelo sertão! Uma terra habitada por gente que também impressiona pela força atávica, cultura milenar, estética, simbólica e ritualística, recebida da África, que por lá é mãe. Terra que também impressiona pelo talento de sua gente. Gregório de Matos, Castro Alves, Jorge Amado e Dias Gomes. Berço de Rui Barbosa e de José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco[4], um dos maiores estadistas do Brasil e responsável pela sanção da Lei do Ventre Livre, denominada Lei Rio Branco. Terra de uma miríade de outros grandes brasileiros. Terra, enfim, dos Novos Baianos, porque os velhos cantores baianos têm decepcionado a nação, que outrora os aclamou!
A Baia de Todos os Santos, no Recôncavo Baiano, foi a porta de entrada do Brasil, ainda na primeira metade do século XVI. Salvador, fundada pelo Governador-Geral em 1549, se transformou numa cidade onde o povo sempre cantou, dançou, suou e comeu muitos frutos do mar, que o digam Ana Romana e Maria do Nascimento, dois nomes que despontam entre as primeiras grandes mulheres do nosso país. Estrategicamente localizada perto dos canaviais nordestinos, que sustentaram o Ciclo do Açúcar, foi escolhida como a primeira capital do Brasil. Capital da Colônia, Salvador recebeu serviços e vários funcionários públicos, que fomentaram o desenvolvimento de um mercado local. Em 1798, quando da Conjuração Baiana, tinha cerca de 60 mil habitantes. Como as decisões políticas da Metrópole estavam totalmente a serviço de interesses econômicos exploratórios, com a superação do Ciclo do Açúcar pelo da Mineração, segunda metade do Século XVIII, por obra do governo do Marques de Pombal, e desgraça para os soteropolitanos, a capital foi transferida para o Rio de Janeiro. Não é difícil conceber o esvaziamento do mercado local, com a transferência de funcionários públicos e o fechamento das portas dos serviços que eram prestados principalmente a eles.
Vamos aos fatos! No final do Século XVIII, início do século seguinte, o processo de Independência do Haiti, por meio de uma revolução sangrenta[5], resultou na primeira República Negra do Novo Mundo. A indignação em São Domingos levou a Ilha a um banho de sangue, pois as conquistas sociais, democráticas e republicanas da Revolução Francesa não beneficiaram a esmagadora maioria negra; só valeram para a minoria branca de proprietários de terras. Meio milhão de escravos negros submetidos a condições de vida anti-humanas, seguindo a Toussaint Louverture e Jacques Dessalines, proclamaram a emancipação do Haiti, levando o medo às elites escravistas latino-americanas, sobretudo à elite agrária brasileira, ao mesmo tempo em que serviram, junto com as Revoluções Americana e Francesa, de estímulo à emancipação dos povos e à abolição da desumana escravatura. A Bahia era um gigantesco Haiti! O temor dos senhores de escravos era grande. Neste diapasão, a Conjuração Baiana foi um movimento eminentemente popular, ao contrário da Conjuração Mineira, que foi um movimento elitizado. Em conjunto com a população da Bahia, a maçonaria executiva teve papel de destaque, sob a liderança do patriota Dr. Cipriano Barata, conhecido como “médico dos pobres”, associado ao centro maçônico Cavaleiros da Luz e, como era de se esperar, adepto dos ideais iluministas. Um aspecto fundamental daquela época precisa ser dito e repetido: enquanto na Europa os ideais iluministas de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, pugnavam por direitos civis e regimes democráticos, nas colônias europeias, o Brasil entre elas, além disso, exigiam direitos de autodeterminação, fomentando fervorosamente o ideal emancipacionista.
Foi nesta terra, matriz do Brasil, onde ocorreu o primeiro grande movimento popular da História do Brasil. No coração dos alfaiates, soldados e gente simples do povo, um movimento progressista fundamentado no princípio da igualdade entre os homens. A maçonaria executiva esteve presente e atuou junto ao povo baiano, num primeiro momento. O conteúdo iluminista do movimento, bem como o suporte às massas iletradas no tocante à redação dos manifestos afixados nas Igrejas e locais públicos em 12 de agosto de 1798, vieram da sociedade secreta Cavaleiros da Luz, centro elitista de debate das ideias vindas da França. Infelizmente, o esforço do Dr. Cipriano Barata, maçom, e ponte com o povo pobre de Salvador, que o admirava, não foi suficiente para convencer a elite agrária e escravocrata a dividir terras e apoiar a abolição. Fica, entretanto, o registro de que o “médico dos pobres”, revolucionário por convicção, foi um dos maiores expoentes da maçonaria executiva ao longo da História do Brasil, sendo um dos principais ideólogos do movimento. Especulo se alguém poderia negar que o Dr. Cipriano Barata tenha dedicado horas no dia 11, à luz de lampião, debruçado sobre sua escrivaninha, a escrever os panfletos distribuídos na manhã do dia seguinte? O texto abaixo, veiculado naquela memorável manhã de inverno, sem a menor dúvida, é da lavra de um maçom, e contém a convocação ao “Poderoso e Magnífico Povo Bahiense Republicano” para que, unido e com firmeza, cortasse a cabeça da serpente do Pacto Colonial. Vejamos:
“Cada um soldado e cidadão mormente os homens pardos e negros que vivem escornados e abandonados, todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade”.[6]
Anônimos Republicanos
Neste movimento histórico, comumente chamado “Revolução dos Alfaiates”, numa alusão a dois profissionais do corte e costura, um mestre e outro aprendiz, que se destacaram na liderança do processo separatista baiano, a elite culta, que compunha o quadro local da maçonaria, apoiou o clamor geral do povo, até que se estabelecesse o conflito de interesses em torno da abolição da escravatura e de outras medidas progressistas idealizadas pelas lideranças populares e por alguns maçons, como o “revolucionário de todas as revoluções”, Dr. Cipriano Barata. Sendo certo afirmar que a Conjuração Mineira recebeu influência direta da Revolução Americana, com a independência das 13 Colônias, como também é correto registrar que a Conjuração Baiana, uma década depois, sofreu a influência revolucionária francesa, especialmente do governo jacobino, encabeçado por Robespierre, cujas medidas de adoção de ensino público gratuito, sufrágio masculino universal, dentre outras, todas de natureza progressista, também eram desejos dos patriotas baianos.
As pautas revolucionárias, fruto da efetiva participação popular no movimento, eram de extrema vanguarda e progressão no sentido da igualdade social, com a criação de uma sociedade antiescravista de homens livres, com direitos e deveres iguais. Daí o posicionamento à esquerda de seus pares, a elite maçônica, do Dr. Cipriano. No que respeita ao braço executivo da maçonaria – especulativa – brasileira, Cipriano Barata, pode muito bem ocupar posição no mesmo patamar e ao lado esquerdo de Gonçalves Ledo. Paladino do povo da Bahia, do qual cuidava como médico zeloso, maçom prestigiado entre as Colunas da Confraria, não só apoiou, como foi mentor das reivindicações revolucionárias. A primeira e mais importante, que diferenciou este movimento dos demais, foi a exigência, firme, pelas lideranças populares, de abolição da escravatura e fim dos preconceitos, principalmente o racial. Embora a liberdade não tenha vindo, demorou ainda noventa anos para acontecer, essa meta revolucionária contribuiu para o processo de politização do povo baiano e de desenvolvimento da “consciência negra” já naquela época. Por isso a imensa comunidade negra da Bahia, no mesmo patamar da comunidade branca e muitas vezes à frente, também está na vanguarda das comunidades negras do gigantesco Brasil. Abaixo da exigência humanitária, os conjurados pugnavam pela forma republicana de governo, um novo modo totalmente diferente de administrar a coisa pública, com liberdade político-administrativa e igualdade social. Percebe-se aqui a influência do ideário Iluminista, recepcionado e difundido pelos maçons da sociedade secreta Cavaleiros da Luz. Reagindo às amarras do Pacto Colonial, sob a influência do pensamento econômico liberal, pretendiam os revolucionários decretar a abertura dos portos ao comércio internacional, realizar uma ampla reforma fiscal, objetivando a diminuição da carga tributária, bem como assalariar o trabalho, apoiando, na medida do possível, o aumento dos pisos salariais. Foram reprimidos com ferro e fogo pela autoridade lusitana.
Os Quatro Mártires Baianos
Quadro brasileiros, baianos, pobres, homens valorosos, heróis da brasilidade, defensores das bandeiras populares, campeões no porfiado combate à escravidão e à desigualdade social. Não eram maçons, mas eram amigos da maçonaria e companheiros de luta do maçom Cipriano Barata, que redigiu muitos dos panfletos por eles distribuídos pelas ruas da “Bahia”. O martírio desses heróis brasileiros, sete anos depois da execução de Tiradentes, desnudou o preconceito, muito além das fronteiras do dissídio, no sentido de que seria um absurdo pobres, negros e mestiços terem sequer a pretensão de participação na vida política do Brasil. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência, mas consequência histórica de uma sociedade desigual e malformada. Neste dia 12 de agosto, rendamos nossas homenagens ao mestre-alfaiate João de Deus do Nascimento, ao aprendiz de alfaiate Manuel Faustino dos Santos Lira, e aos soldados Luís Gonzaga das Virgens e Veiga e Lucas Dantas do Amorim Torres, os “quatro santos coroados da Bahia”, que morreram em nome de todos os brasileiros na luta contra a desigualdade social.
[1] José da Silva Lisboa. Aqui, apenas conjecturo, mas estou propenso a aceitar que o Visconde de Cairu, cujo nome está ligado à Abertura dos Portos em 1808, monarquista, tanto quanto José Bonifácio, apoiador de D. João VI e, depois, de D. Pedro I, era o misterioso “Cigano Baiano”, autor da obra “Flores Celestiais Colhidas Entre os Espinhos da Sagrada Coroa da Augusta, Venerável e Soberana Cabeça do Divino e Imortal Rei dos Séculos Jesus Cristo, Deus e Homem Verdadeiro, Tecidas em Cinco Ramalhetes em Honra e Louvor das Cinco Preciosíssimas Chagas de Nosso Adorável e Amoroso Redentor e Salvador”, com o pseudônimo de José Cortez Sol Posto, o que me leva também a considerar, como correta, a afirmação de Ferreira Durão de que o Visconde era membro da Cavaleiros da Luz e maçom, pois o Sol nasce no Oriente, e se põe no Ocidente. E católico fervoroso, acrescentemos, se realmente for o autor desta obra de título renascentista. Aliás, a religião não era excludente de admissão no âmbito daquela entidade maçônica e histórica, como até hoje não o é em nenhuma Loja Maçônica regular e muitos católicos, inclusive sacerdotes, eram maçons. Lá estava o Padre Francisco Agostinho Gomes!
[2] Cujo conselho a D. João coincidiu com a decisão já tomada anteriormente pela Inglaterra, uma espécie de tutora voraz da Corte portuguesa e responsável pela travessia atlântica de uma nobreza sem caráter e sanguessuga. Também tem o mérito de ter participado da redação dos respectivos Decretos.
[3] Nasceu em Salvador em 1851, mesmo ano de fundação da Colônia Dona Francisca, hoje Joinville, onde faleceu em 1922. Foi deputado estadual e federal, senador e prefeito da Manchester Catarinense.
[4] Pai do Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr.
[5] Revolução Haitiana ou Revolução de São Domingos (1791 a 1804), que resultou na Independência do Haiti.
[6] Da Obra “História do Brasil – Da Colônia à república” de Elza nadai e Joana Neves, 5ª. edição, p. 117.