O portão (Guerreiro)

O PORTÃO

Por Walter de Queiroz Guerreiro

Tinha diante de si o portão. Alto, extremamente alto, não tão largo quanto seria de se esperar e com uma aparência de solidez espantosa. Transmitia algo de incomum, como haviam lhe descrito, quando o visse não teria a menor dúvida de estar diante da passagem. Olhou a muralha ao longo da qual caminhara todo o dia, e ali, no lado leste da cidade, onde o sol nascia, encontrara o portão. Visto de perto tinha todo o aspecto de ser antigo talvez mais antigo que os próprios muros, se é que isso era possível. Escuro, de um tom castanho tão profundo que beirava o negro, onde se adivinhavam veios de uma madeira que ele não podia identificar, ao toque da unha impenetrável, porém com o calor de algo que recebia o toque da mão e não a repelia como o metal, calor de algo que fora vivo, retendo uma centelha da árvore que lhe dera a vida, quem sabe a seiva correndo no íntimo das pranchas, quiçá o frescor do orvalho depositado na noite. Atravessava o portão longas dobradiças, de fora a fora, tocando-se no centro. Entreviam-se os gonzos embutidos no muro, cada um com três pés de altura, deles saindo as hastes das charneiras, longas, retas e de ferro forjado, com cravos aparentes em toda a extensão formando um desenho de hexágonos, cada cravo octogonal o centro de linhas entrecruzadas. Uma multidão de linhas recurvas traçadas a buril, arabescos sem começo nem fim desenrolavam-se ao longo do metal. De perto se notava que a madeira fora entalhada segundo o mesmo padrão, apenas a poeira e o tempo recobrira parte do desenho, de maneira que a madeira parecia ser lisa, polida com o toque adquirido com o convívio com os homens.

Quanto mais olhava mais percebia que este não era um portão comum, tinha diante de si uma obra de arte, bastante diversa das portas de muralha que vira por toda a parte, das portas de Santa Sabina, dos portões do Krak des Chevaliers, ou das portas da Hagia Sofia. O desenho que recobria o portão era semelhante a tantos outros a que se acostumara por todo o Oriente, linhas se desenrolando harmoniosamente, aparentemente sem começo nem fim, variando de densidade, áreas totalmente recobertas e áreas vazias, a mudança refletindo um movimento rítmico, ora paralelas ora se entrecruzando, entrelaçando-se, encontros e desencontros em busca do centro de estabilidade das espirais no centro de repouso do movimento, e então a volta, a busca de outro caminho, de outra linha, subindo e descendo, percorrendo de novo o traçado no sentido inverso,aparentemente sem descanso, a assimetria buscando a simetria. Era de fato esse o motivo, mas sua distribuição dentro dos polígonos era mito mais complexa, pois os arabescos se desenrolavam em direção ao centro do portão, engalfinhando-se e formando um grande novelo, uma área em que todos se transformavam em um só, enquanto na periferia, nos limites do portão eram pequenas unidades, como pétalas de uma flor, distribuídas em toda a volta, humildes partes de um todo.

Ficara tão absorto na visão da superfície que só agora se dava conta que não encontrara a porta pequena, geralmente colocada à direita, e por vezes à esquerda numa das folhas do portão, servindo para a entrada dos viandantes. Diante das dimensões do portão era impossível que a passagem se desse empurrando uma das folhas, e, no entanto era o que parecia – tentou empurrar no centro, e como era previsível empurrara uma rocha. Olhou atentamente da esquerda para a direita e de novo a superfície se mostrava absolutamente uniforme, não havendo o menor sinal de uma porta de acesso. Teriam se passado tantos anos, desde o último viandante, que as frestas tivessem sido preenchidas e a porta se igualado ao portão? Com as mãos começou a tatear metodicamente à meia altura buscando uma fenda, um sinal dessa abertura, um ponto que prenunciasse a passagem. Nada, absolutamente nada. Principiou a se desesperar, não andara tanto para encontrar a passagem, e ser bloqueado por um simples portão.

Desde o momento em que aquele homem, com a roupa recoberta de remendos lhe dissera existirem muitas ch?h?r t?q¹, mas maior que todas elas era o Portão do Leste, e que ele o conduziria ao que tanto buscava, que desde então este se tornara sua meta. Agora estava diante do portão e não conseguia achar a passagem, levando-o da tranquilidade ao desespero. Bateu com os punhos, colocando toda a força que tinha no encontro das duas folhas, tudo em vão. Os pés se enterravam na areia, o corpo inclinado contra a massa inerte, o suor recobrindo a visão, e nada. Com as mãos espalmadas no centro da porta foi-se apoiando esgotado, até encostar a testa na madeira, todo o seu ser se esvaindo no esforço, e pensou: Meu Deus, tanto sacrifício em vão, não vou encontrar a passagem. Nesse instante sentiu sob a testa um movimento ligeiro, firmou-se com a palma das mãos e o movimento continuou. Ergueu-se, e para espanto seu o ponto em que se apoiara tinha cedido ligeiramente, talvez na espessura de um thaler, e um trecho do portão a sete ou oito palmos de altura do chão, exatamente no centro, onde jamais se pensaria colocar uma porta, se deslocara. Com as duas mãos empurrou, aos poucos surgindo a passagem a uma altura incompreensível, já que se tratava de uma porta. Segurando a borda escalou o portão, passando num impulso para dentro.

Visto agora do outro lado o portão era mais espantoso ainda, pesadas trancas atravessavam-no capazes de resistir a qualquer aríete, e no centro, justamente onde se daria o impacto de qualquer máquina de guerra era onde ficava a porta, de espessura inacreditável. Empurrou-a de volta e ela deslizou nos gonzos ocultos suavemente até se igualar ao portão. Ouviu um estalo, e uma tranca desceu para fechar também essa passagem. Entendeu então o mecanismo engenhoso que tinha diante de si, as trancas se articulavam com um dispositivo em contrapeso, e ao encostar a porta o último barrote descia tornando-a invulnerável, a não ser em único ponto correspondente ao local onde apoiara a testa, e que era a chave da abertura.

Estava numa antecâmara de solo batido, a areia fria tão compactada eu não deixava marca dos pés. Não havia sinal de pessoa ter passado por ali, e, no entanto muitos através de séculos haviam buscado o caminho. Principiou a andar, o caminho era um corredor longo, paredes nuas de cada lado, o chão liso e plano, apenas o som abafado de suas pisadas, e o ar. A luz de origem indetectável preenchia o espaço como penumbra, não se sabendo a origem, uniforme mesmo que se olhasse para cima ou para frente. A sensação era estranha, perdia-se ali a noção da distância e do movimento, andando num tempo irreal, onde tudo era uniforme. Teve aos poucos a sensação de que o chão não era mais absolutamente plano, conforme avançava o piso descia imperceptivelmente.

Caminhava resoluto decidido a encontrar a razão de tudo, de instante a instante mais automaticamente, a mente repassando cada momento. Sentiu o ar mais pesado, a luz que banhava tudo se enfraquecendo, a ponto de não enxergar mais a ponta das botas. A cada passo a sensação era pior, e ele agora tinha a certeza de que a passagem se estreitava. Num relance lembrou-se de experiência que tivera na juventude, numa caverna que explorara, e onde se dizia que no fim existia uma porta de ferro. Fora um pesadelo, as paredes cada vez mais próximas até terminar em uma fenda, os morcegos se debatendo contra a luz da tocha em fuga louca para o exterior, indo de encontro a seu corpo, ele se arrastando pelo chão tentando atravessar a passagem e chegar à porta, no fim a certeza de que era impossível a um homem ali chegar. Repetia-se o fato, com a diferença de que ele não tinha tochas, não existiam morcegos e a caverna não era natural, mas o sentimento de angústia e o medo eram iguais. A mente rodava em turbilhão, as lembranças se sucediam recordando tantos acontecimentos negros do passado.

Morte, abandono, desespero e a memória do cárcere, a fímbria de luz vindo do teto, os dias se sucedendo e a desesperança aumentando, os longos corredores e as grades por todo o lado, os homens reduzidos à condição de animais, o barulho contínuo das vozes e gritos atravessando a noite e o silêncio dos dias numa inversão da ordem natural, o mundo transformado em areia escorrendo pela ampulheta virada de supetão, todos os valores caindo por terra naquele escoamento contínuo, som dos grãos se atropelando num jorro, som de todas promessas se esvaindo. Naquele silêncio sentiu de novo o terror, a repulsa e a atração da morte, as mãos buscando a garganta fechada, o coração disparado, o ribombo no silêncio.

Fechou os olhos e respirou, deixou a mente acalmar, e voltou a caminhar, um pé após outro, buscando no ritmo das passadas um objetivo. Aos poucos foi sentindo firmeza, o solo respondendo às passadas, um sentimento de tranquilidade invadindo o corpo. Pensou no cerne de sua busca, e de como se desviara dos objetivos na ânsia de viver.

O ar se modificara de pesado se tornara leve e mais claro, cada vez mais claro. Não podia definir o que estava acontecendo, o corredor era o mesmo apenas se alargara, o piso de areia dura continuava o mesmo, apenas os pés pareciam deslizar, mas a diferença principal estava no ar que o envolvia. Não havia corrente, mas a sensação de frescor, não existiam odores, porém tinha-se a impressão de algo suave, ligeiramente acre e agradável, como resina de pinheiros, um odor que penetrava fundo, sutil e onipresente. E o mais estranho era que não parecia estar presente no ar, não era uma lufada de passagem como se certificou com a mão aberta, mas todo o ar tinha se alterado, era ele próprio que mudara numa sensação indefinível nunca antes experimentada. Nesse instante descobriu que desde o início a luminosidade e o ar que o envolvia eram uma coisa só, como se o ar contivesse partículas daquela luz que preenchia todo o espaço. O corredor desde o início era isso: um grande espaço preenchido por uma mistura única, que neste instante lhe parecia divina.

Deixou seu espírito vagar, não procurava mais definir o que sentia, mas se sentia bem, e o que importava era trilhar o caminho. Já entrevia a massa escura do portão, o fim da jornada. Uma centena de passos e tinha diante de si um portão idêntico ao primeiro, com as grandes trancas em seus lugares e os sistemas de contrapesos guarnecendo a porta de entrada. Tateou em busca do ponto de equilíbrio e empurrou. Os gonzos estalaram e a porta se abriu suavemente, sem esforço, como se tivesse sido azeitada. Ergueu-se com as duas mãos e saltou para o exterior. Empurrou a porta para dentro e ouviu os estalidos dos barrotes fechando a passagem.

Neste instante tomou consciência de algo fantástico. Tinha à sua frente o portão. E era o mesmo da entrada, o portão leste da muralha. Não podia crer no que via, pensou numa alucinação. Teria tombado desfalecido num esforço pela abertura, teria sonhado com o caminho?

Abriu os dedos da mão direita e olhou para o meio da mão. Viu o M de Maria gravado firmemente no centro, viu os dedos alongados com as marcas do tempo, mas viu algo mais. Fechou os dedos, um a um, encerrando o côncavo da mão, capturando o ar que aprisionara na passagem.

Deu as costas para o portão, sabia ter encontrado o caminho.

 

Nota:

ch?h?r t?q ¹- construção arquitetônica simbólica da transformação do círculo em quadrado, local de renascimento espiritual na tradição sufista.

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