O tempo guarda os cadáveres (David)

O TEMPO GUARDA OS CADÁVERES

O tio Manquito era alegre, espírito aberto. Mais jovem que o pai. Manquejava, a perna esquerda mais curta. Quando fiquei órfão, aos oito anos, ele cuidou de mim e da mãe. Uma vez por semana aparecia em casa, com compras providenciais. Contava histórias, e ria, ria muito. Era casado: mulher bonita, mas de poucos sorrisos. Ela não aparecia lá em casa. Cresci sem saber se ele era o pai ou o tio, ou irmão que nunca tive.

Aconteceu, então, que a mulher dele o abandonou. Deixou o ninho e se aventurou por aí. Aquela ingrata!, esbravejou. Dei tudo o que podia e um pouco além, recebo como prêmio o abandono.

A vizinhança mexericou. A cidade ferveu em histórias. Uns desconhecidos escreveram a carvão na sua porta: Esqueça a Maria, ela nunca mais voltará.

Rarearam suas visitas em nossa casa. Eu passei a visitá-lo. Encontrava-o triste, um tanto bêbado. Minha mãe , todas as quartas-feiras à tarde, embelezava-se e banhava-se com água de colônia, e ia ao supermercado e lojas.  Voltava já noite. Tinha sempre um brilho estranho nos olhos. Parecia mais bonita.

Um dia, sábado à tarde, conversando na varanda de sua casa, me confessou:

– Quando morrer, deixo esta casa pra você.

Fiquei assustado. Nunca me tinha passado pela cabeça que tio Manquito era mortal.

– Oh, tio, mas que besteira! Você vai aos 120 anos…

Me olhou tristemente.

– A vida nos prega algumas surpresas – disse, olhos embaçados. – Estou com câncer, rapaz. É o fim.

Levantou-se, manquejou na varanda, depois sentou:

– Cuide bem de sua mãe. Ela é pérola.

Foi uma conversa esquisita. Saí de lá com o coração nas mãos. Estava bêbado? Falava a verdade? Nada comentei em casa.

Três meses depois, ele morreu. Estava tão magro e cadavérico, irreconhecível. Maldito câncer, ruminei.

Não tive sossego enquanto não fui morar na casa dele. A contragosto, minha mãe, tão desolada com a perda, resignada, me acompanhou. Nunca mais vi minha mãe sorrir. Sempre quieta, pesarosa.

A presença de tio Manquito dentro de casa e no quintal era quase física. Mãe, eu disse, você não gosta desta casa, parece tão triste. Ah, filho, o  tio Manquito me faz lembrar de seu pai… Derramava lágrimas furtivas.

A casa estava em péssimo estado. Resolvi  melhorá-la. Os pedreiros estavam há dias nos reparos. Nos fundos, despensas, churrasqueira, banheiro. Eles cavavam. De repente, deram com uma taipa de concreto. O que era aquilo? Com picaretas, rebentaram-na. Afastaram-se, apavorados. Era um esqueleto humano.

– Deus! De quem será? – quase gritei.

Olhei pra minha mãe. Estava pálida. Em seguida, desmaiou.

 

David Gonçalves

 

 

 

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