O tempo (Joel)
O tempo
Joel Gehlen, crônica quintaferina, 29/10/2015
A guerra tinha acabado, mas alemães e japoneses – também seus descendentes – continuam sendo perseguidos. Por isso, o menino que se punha pingente no lado de fora do bonde para não ter de pagar a tarifa atendia por Pedrinho. Mas seu documento, e isso é um segredo guardado, traz o nome de Kozo, tradicional palavra da ilha do sol nascente que, dentre outros significados, dá nome ao delicado e resistente papel de arroz, propício às aquarelas e caligrafias. Com os trocados economizados no bonde, Pedrinho e outros garotos estafetas podem reunir-se na Praça da Sé e se entregar ao prazer indizível de um pastel com carne.
Quando rapaz, Pedrinho está plenamente adaptado. Mora em Jaçanã, tem seu ordenado e vive a boemia de São Paulo, como nos versos que Adoniran comporia muitos anos mais tarde. Porém, quando perde o último trem, dá um jeito de arranjar uma confusão no bar para ser recolhido ao xadrez, onde passa a noite, com direito a cama, cobertor e café da manhã. Tem fama de brigão, bate uma sinuca como ninguém, tira sambas de cor e desfila no Carnaval. Já o Kozo era um sobrevivente, trazia um subterrâneo de traumas, da imigração, da guerra, da Shindo Renmei e da milenar têmpera nipônica. Os dois conviveram e, de repente, completam 80 anos. Duas naturezas, um só coração, sob a mesma cabeça encanecida.
São inescapáveis, tanto o ditchan dedicado e sistemático, que frita tempurá aos domingos, quanto o Pedrinho, que pode irromper no meio da tarde, com olhos vívidos e um samba antigo nos pulmões, que põe para fora com voz firme e compassada: “A chuva cai no telhado do meu quarto, eu contemplo o seu retrato…” . Ébrios de nostalgia, cantamos juntos, recompondo na memória os versos dos anos 50. Ele encontra o tom, ajeita a garganta e estica com gravidade: “…vida comprida, estrada alongada…” Esse, um samba abolerado de Herivelto Martins, “Caminhemos”, grande sucesso na voz de Ângela Maria. Depois, dividimos silêncios diferentes, que se cruzam sem se tocar, cada um dentro do seu tempo, imersos em suas circunstâncias, mas ambos tangidos por essa essência que não se submete à “casca dourada das horas” e projeta o porvir ao infinito.