Onde fica o que deixamos para trás? (Cristina)

Onde fica o que deixamos para trás?

Houve uma época em que eu era leitora ávida. Os livros eram o universo que tinha ao meu alcance, uma forma de escapar e ampliar o mundo que me parecia – e era mesmo – tão pequeno. Lia, lia, lia, um livro atrás do outro, com uma gana que poucos entendiam.

Adolescente, saía da escola por volta de meio-dia e antes de pegar o ônibus e voltar para casa passava na biblioteca do Sesc e pegava os livros que seriam devidamente devorados à tarde. Apresentava o cartão de empréstimos preenchido de um lado e do outro – e guardava com secreto orgulho o cartão antigo, inteiramente tomado, que já havia sido substituído. Muitas vezes era um livro a cada tarde longa. E no dia seguinte, outro. Quando chegou a época de vestibular e me apresentaram os títulos a serem estudados para as provas, respirei. Uma coisa a menos. Já conhecia  praticamente todos.

Outro dia estava lendo a resenha do livro “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, escrita pelo confrade Ronald Fiúza para o site da Academia Joinvilense de Letras e essas lembranças tomaram conta da minha manhã de domingo – um domingo como tantos outros desse segundo trimestre de 2020, em que estamos em casa, vendo o céu escandalosamente azul pela janela.

Primeiro li a “A Obra em Negro”, da mesma autora. Romances históricos têm um fascínio inexplicável e pesquisar para tentar separar o que era ficção de realidade se tornou um hábito que fez toda a diferença em minha vida – e que cultivo até hoje. Depois veio “Memórias de Adriano”, com sua linguagem direta. Textos em primeira pessoa parecem simples, mas não são. Eles têm a capacidade de estabelecer rapidamente um vínculo imediato com o leitor, o prender. É difícil deixar alguém falando sozinho, mesmo quando esse alguém é um personagem fictício.

Naquela época comprava poucos livros. Mas consegui adquirir “A Obra em Negro”, um dos títulos de uma dessas coleções populares da Editora Nova Fronteira (depois incorporada à Editora Globo), em papel jornal e preços populares, que eram lançadas de vez em quando e vendidas em bancas de revistas. O papel jornal amarelava com o tempo, deixava o livro feio. Mas era uma opção para quem tinha pouca grana e muita vontade de ler.

Após ler a resenha do confrade fui procurar meu exemplar na estante dos livros esquecidos… E cadê ele? Não estava lá. Decerto em uma dessas mudanças de casa e de rumo ele mudou de mãos. Ou talvez ainda esteja na casa da minha mãe, de onde saí há mais de 30 anos.

Talvez simplesmente ele tenha ficado para trás, como o hábito de ler no sofá nas longas tardes da adolescência. E como ele tantas outras coisas que eram tão caras em algum momento e que aos poucos foram sendo substituídas por outras ou simplesmente perdendo o sentido. Aquelas coisas que estavam lá no fundo, bem guardadas e que vem à tona de repente, trazidas pelo aroma das madeleines ou pela resenha de um livro antigo. Pessoas, hábitos, prazeres, sensações, lugares…

Onde fica o que deixamos para trás? Que lugar é esse que concentra o que já foi tão presente e hoje é só lembrança? Deve ser lá, naquela estante empoeirada e esquecida onde está “Memórias de Adriano”.

 

Maria Cristina Dias

 

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